sábado, 17 de setembro de 2011

A MALDIÇÃO DE ROMÃO











“A morte parece menos terrível quando se está cansado.”
Simone de Beauvoir




I

O sono leve, que a acompanha desde a mais tenra infância, fora o responsável por despertá-la tão facilmente. Mesmo com a agitação no quintal – os bichos pareciam enlouquecidos – o homem ao seu lado continuava a dormir tranqüilamente. Ela não precisava de relógio para saber que logo o dia raiaria. Em pouco mais de uma hora, o marido estaria sob o sol forte na lavoura, não seria justo acordá-lo por um motivo tão banal. Malditos animais.

Resignada, ela esfregou os olhos e acendeu o lampião localizado sobre a mesinha de madeira no lado direito da cama. Arrastando os pés descalços, tomou a direção da cozinha, o criadouro ficava na parte posterior da residência.

A porta estava semi-aberta. Havia frutas e algumas hortaliças espalhadas pelo chão. Os armários estavam revirados, como se tivessem procurado por alguma coisa de forma atabalhoada. No lado de fora, porcos e galinhas continuavam inquietos. Ela não fazia a menor idéia do que estava acontecendo e já se preparava para acordar o marido quando algo chamou sua atenção. Apesar de devotada e dependente – como uma boa esposa deve ser, segundo sua mãe – freqüentemente ela era assaltada por impulsos de auto-afirmação. E, intrigada com o que vira, se deixou levar pela curiosidade.

— Quem é que tá aí? Vâmo saindo do meu quintar que eu num tô prá brincadera.

Indiferentes às ameaças da mulher, os dois pontos rubros e incandescentes permaneciam fixos no interior do galinheiro, num convite mudo à averiguação.

— Ora, seu...

Decidida a acabar com a confusão que lhe privara do sono, ela agarrou o cabo de uma faca de cozinha e ganhou o ar livre. A noite quente somada à irritação arrancava filetes de suor do seu rosto. Com passos firmes, seguiu rumo ao criadouro. Os porcos haviam escapado por uma fenda no cercado de madeira, o alfeire estava vazio. Algumas ripas também haviam sido arrancadas da estrutura do galinheiro.

Fazendo uso do alcance luminoso da lanterna, ela abria caminho pela área do abrigo dos galináceos. Não havia sinal dos pontos em brasa, mas o luar incidia no interior do casebre por conta das muitas telhas faltantes em sua cobertura.

Os poleiros e compartimentos gradeados estavam arruinados, assim como os caixotes e comedouros. Examinando o chão de terra batida, ela percebeu que vários espécimes estavam mortos. Os que haviam sobrevivido mantinham-se agrupados num dos cantos no fundo do galpão. Penas e sangue se mesclavam a cabeças e pés decepados. A mulher gritou e seu grito foi acompanhado por outro ainda mais incisivo.

A criatura, oculta numa das vigas de sustentação do telhado desde a chegada da invasora, resolvera, com um salto certeiro, revelar sua presença. A vítima foi ao chão deixando escapar o objeto que trazia como proteção. Com mordidas vorazes, o ser despedaçava uma das pernas da mulher. Mesmo revestida por uma dor indescritível, ela tentava, a todo custo, alcançar a lâmina perdida.

As mãos desesperadas tateavam o barro, mas nada achavam além dos restos sangrentos das aves mortas. Ela sentia a carne da parte posterior da coxa direita ser extirpada por dentes ávidos. Seria devorada viva. Tinha plena convicção disso.

Algo cortante tocou seus dedos: o lampião. O vidro do revestimento havia se partido, mas a estrutura metálica iria servir. Movida pela raiva, ela girou o utensílio e acertou a cabeça da criatura com toda a força que ainda tinha.

Aproveitando-se do momento de hesitação do agressor, a mulher se colocou de pé da melhor maneira que pôde, tentando fugir do galinheiro. Um rastro de sangue ficava pelo caminho.

Visualizando a porta escancarada da cozinha, ela chorava e gritava pelo marido. Seu coração disparou quando viu algo que não tinha percebido antes: o cachorro da família, o bom e velho Duque, jazia ao lado do roseiral com um forcado atravessado na barriga.

— Mi acode, Bento! Pelo amor di Deus, mi acode!

Tropeçando nas próprias pernas, a mulher foi de encontro ao solo, mais uma vez. Virando o rosto para o céu, percebeu que a criatura não só a perseguira, como já estava diante dela. E, pela primeira vez, ela pôde vislumbrar todo o horror dos seus traços, uma imagem que a atormentaria por toda a eternidade, não só pelo medo absoluto, mas principalmente pelo profundo desconforto que as linhas imprimiam em sua alma. Como o Criador permitira que aquilo existisse?

Os olhos vermelhos a encaravam. Traços de sangue escorriam do sorriso dissimulado, o seu sangue. Não havia mais como fugir. Estava encurralada não só pela presença maligna, mas, sobretudo, pela apatia que lhe roubava as forças. Não é certo algo assim caminhar pelo mundo. Só um milagre a salvaria.

— Larga ela, fio du demo! Larga!

Bento disparava a espingarda, afugentando a criatura para a mata. Mas a mulher já estava morta. Não pelo ataque. Não pelo sangue perdido. O que ela tinha visto no olhar da criatura era amargo demais para ser absorvido, razão suficiente para fazer com que o sopro da vida se esvaísse do seu corpo.

II

Romão apertava o passo, não queria deixar a mãe esperando. O menino se esforçava para repor o que havia tirado. Ele sabia que era uma missão ingrata, árdua ao extremo, e que não receberia ajuda de ninguém. O tempo se mostrava como um elemento irônico em sua vida, pois quanto mais estava presente, mais parecia lhe faltar. Se pudesse, já teria dado um basta em tudo. No entanto, ele não podia. A dor dessa incapacidade o atormentava dia após dia, no corpo e na alma.

Mesmo tanto tempo depois, ele se lembrava de tudo com riqueza de detalhes. O sol, com a costumeira presença, marcava seu rosto pelo quadrilátero da janela no início de tarde. A toalha xadrez cobria a madeira envelhecida como sempre fazia na hora do almoço. A mãe já havia recolhido os pratos e panelas, e se encontrava entretida com o preparo de um embrulho

Romão, com as mãos no queixo, divagava sobre a mesma idéia fixa que o atormentava toda sexta-feira, dia em que a mãe preparava o seu prato preferido. Ele se esforçava para manter oculto o temperamento explosivo e ardiloso inerente a sua natureza. Por vezes, relatos absurdos a respeito de eventos creditados a ele chegavam aos ouvidos dos pais. E, por mais que ele zelasse pela boa conduta dentro do lar, e tivesse reconhecimento disso, todo cuidado era pouco. Porém, às vezes, certas situações chegam num ponto em que a ebulição se torna inevitável. O menino já extrapolara os próprios limites há tempos.

Ao receber o embrulho das mãos da mãe, e ouvir as costumeiras recomendações, Romão ganhou a trilha em direção à lavoura. Ele poderia alegar que o diabo em pessoa soprara em seu ouvido a fim de arquitetar as idéias que estava prestes a por em prática, mas o coisa ruim não tinha absolutamente nada a ver com seus planos. O menino não dava créditos a ninguém, era egocêntrico demais para isso. Não admitia compartilhar nada que lhe pertencesse, nem mesmo a culpa.

Ao enxergar o filho chegando, o lavrador jogou a enxada de lado e tirou o suor da testa.

— O que tua mãe mandô di armoço, Romão?

— Hoje é sexta, o memo di sempre.

Ao retirar o pano de prato e destampar o vasilhame, o homem foi tomado pela indignação. E, mesmo sem querer acreditar no que seus olhos insistiam em lhe mostrar, ele perguntou:

— Mas o que é isso, minino? Tua mãe perdeu os miolo, é?

O roceiro exibia o pote repleto de ossos de frango, todos roídos ao extremo.

— Num sei, pai. Foi isso que a mãe mandô.

— Dexe de bestera, Romão.

— Acho que ela comeu tudo com o moço.

— Que moço, minino?

— O que sempre vai em casa dispois que o sinhô sai...

O homem não quis ouvir mais nada. Tomando a enxada nos braços, correu transtornado sem olhar para trás. Romão adorava ensopado de frango, sobretudo as coxas, sua parte preferida. Mas toda sexta-feira, dia em que preparava a iguaria, sua mãe sempre lhe privava da escolha em favor do pai. Ela dizia: “ As coxa do frango vão pru seu pai, ele adora, e trabaia de sor a sor prá pô a cumida na mesa, Romão.”

A revolta o consumia devido a tamanha injustiça. Uma vez, só uma vez, ele comeria o que quisesse, nem que para isso tivesse de jogar um contra o outro. Estava cansado de precisar abrir mão do que desejava. Certamente, tomado pela vergonha, seu pai sairia de casa. Assim, não seria preciso dividir mais nada com ninguém.

Mas, ao retornar, o sorriso de satisfação, que até então tomava o rosto do garoto, foi substituído por absoluto pavor. Logo na varanda, ele se deparou com o olhar paralisado do pai. A língua arroxeada do homem pendia num dos cantos da boca escancarada. Enforcado por uma corda amarrada numa das traves de madeira, ele jazia como um pêndulo inerte.

Assustado, mas não a ponto de fugir, o menino entrou pela porta sem olhar para o pai. Pegadas sangrentas vinham ao seu encontro, ele as seguiu até a origem, a cozinha. Numa poça vermelha, junto ao fogão a lenha, estava sua mãe, com a parte metálica da enxada enterrada na barriga. Cautelosamente, ele se aproximou e percebeu que ela ainda respirava.

— Romão...Romão...o que ocê feiz, Romão? Eu vô morrê, minino. Mas ocê num vai tê discanso. Ocê num vai conhecê nem céu nem inferno...vai vivê...vai sê consumido pela dor da tua fome...


III

Ele apertava o passo por entre a mata fechada, precisava chegar em casa antes do sol raiar. Seus pais o aguardavam, não queria desapontá-los novamente. Como era difícil conseguir a redenção.

A trilha despontava à frente, só precisava segui-la ao longo do curso do rio para chegar ao descampado. O som de galos cantando ecoava ao longe. A fome o açoitava com a eficiência de lâminas afiadas, era preciso ser forte. Já estava no quintal de casa, os pais o aguardavam, os primeiros raios do dia surgiam no horizonte.

— Oia, mãe, oia o que eu trouxe pru pai. Espia, num cumi nada não. Até as perna tão aí...ele vai gostá, mãe...ele vai gostá...

A criatura jogava galinhas mortas sobre o túmulo do pai, o qual se localizava ao lado do repouso eterno na mãe, no cemitério destinado ao povo simples da cidadezinha. Os olhos encarnados vertiam lágrimas escuras que escorriam lentamente pela pele acinzentada do rosto infantil.

— Mi perdoa, mãe. Dexa eu deitá cum ocês, mãe. Eu tô cansado...cansado di tudo...mi perdoa, por favô...

O sol queimava sua carne, que se soltava do corpo e caia no chão, para novamente crescer e queimar, numa repetição incessante de dor e agonia. Ele insistia pela resposta da mãe, se negava a abandonar o que chamava de lar. Mas o túmulo, como todos os outros, guardava o silêncio dos mortos, um privilégio que ele ansiava obter.

O dia já abraçava totalmente o descampado, ao passo que a dor causada pelo sol e pela fome corroía os últimos fios de lucidez que ainda restavam em sua mente perturbada. Era demais, até mesmo para ele.

— Mãe, pai, priciso ir. Amanhã eu volto...

A criatura ganhou as sombras da mata fechada, levando nas paredes secas do coração a esperança de que um dia conseguiria o perdão e a morte.


*Texto inspirado na lenda "Romãozinho", do Folclore Nacional.

2 comentários:

  1. Parabéns pelo conto! Encontrei este blog a esmo e estou gostando muito!

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  2. Feedback técnico: gostei da maneira como explica a situação de trás pra frente. A primeira parte é fisgante e nos faz ler por mais.

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