sexta-feira, 25 de outubro de 2013

A LENDA DO HUMANO




-Paaaiiii !!!!! Olha a Helena de novo pai !!!! – gritou a garotinha.

-O que foi desta vez, Lara? O que sua irmã fez? – perguntou o pai irritado.

-Ela está me assustando de novo. Está falando dos seres humanos que vêm me pegar de dia pai. Ela disse que eles nos envenenam com alho, jogam a gente em água corrente até derreter, nos queimam no sol e ainda enfiam estacas no nosso coração. Estou com medo, pai! Não quero dormir sozinha não. Quero ficar com você e com a mamãe. Vou ficar no caixão de vocês.

-Heleeennnaaaa !!!! – gritou o pai vampiro, chamando a filha adolescente.

-O que foi pai? Qual o problema dessa vez?

-Você sabe muito bem mocinha. Que negócio é esse de ficar assustando sua irmã? Você sabe que ela tem medo dessas baboseiras de terror. Por que você faz isso?

-Ah pai. Ela já é bem grandinha para acreditar nisso, né? Vê se pode, na idade dela eu já queria cravar os meus dentes sozinha em algum bicho-homem que a gente tem no pasto ou até mesmo caçá-los nas florestas.

-Deixa de história, Helena! Você sabe muito bem que ninguém faz isso. Você está pensando o que? Que é alguma selvagem é? Hoje em dia conseguimos tudo nos mercados, bem prático. Você não saberia abater um humano agora, quanto mais na idade da Lara. Por falar nisso, passarei no mercado antes do amanhecer, já estamos ficando sem O positivo.

-Pai, a Helena disse que os humanos conseguem pensar e até mesmo se misturam entre a gente para nos confundir e enganar.

-Não escute sua irmã, minha morceguinha. Ela está só querendo te assustar. O bicho-homem é criado nos pastos para nos alimentar, o sangue deles é retirado nas fazendas e distribuído nas indústrias onde é separado e engarrafado. Então, é enviado para os mercados para que possamos comprá-los. Venha, coma um bolinho de plaqueta e vá para o seu caixão. Não se preocupe porque eles não pensam e muito menos se misturam entre nós para poder nos fazer mal.

-Está bem pai, bom dia!

-E você hein, dona Helena ...

-Ah, pai! Não esquente! Pai, por falar nisso, eu vou sair com a Ingrid, com o Ivan e o Jean, nós iremos naquela boate nova e devo chegar durante o dia...

-Helena, você sabe que é perigoso durante o dia. Você quer virar torrada, é?

-Não se preocupe, pai. Eu já passei aquele super protetor solar, mas se o sol estiver bastante forte, nós voltaremos pelo túnel, o pedágio é bem caro, mas o Jean é rico, ele pode pagar. Eu não sou uma vampira de sorte?

-É, deve ser sim. Quando é que ele virá aqui?

-Ah, pai, a gente está se conhecendo ainda. Ele quis vir, mas eu não deixei, está muito cedo ainda.

Os dois casais foram para o “DAY” e se divertiram como nunca. Dançaram, comeram, beberam todas, como se diz por aí. Coquetéis de hemácias, drinks suaves com glóbulos brancos, misturaram sangue tipo B com O negativo. Já tarde do dia, resolveram ir embora. Ingrid e Ivan em um carro e Helena e Jean em outro. Este jovem, por sinal, pagou as despesas de todos na boate e pagou, também, o pedágio no túnel expresso para os dois carros, para que todos pudessem chegar em suas tocas em segurança.

Feliz da vida, a amiga Ingrid vira-se para seu namorado Ivan e comenta:

-Sabe, Ivan, a Helena é uma vampira de sorte mesmo, o Jean é um vampiro incrível.

Enciumado o rapaz comenta:

-Puxa, e você não vampirinha? Eu sou um morcego legal...

-Claro que é Ivan! E eu tenho muita sorte também por ter você. Só estou comentando isso porque gosto de ver minha amiga bem, embora ela pegue muito no pé da Larinha, coitada, ela fez a vampirinha chorar sangue na noite passada com a história dos humanos que nos caçam.

-Ah, mas tenha dó né, Ingrid? Hoje em dia as crianças não acreditam mais nessas historinhas de terror, coisas que não existem, né?

-Claro que não, essas coisas não existem...


Se Ingrid tivesse prestado um pouquinho de atenção no carro dos amigos, teria percebido que este acessara uma saída de emergência no túnel lacrado, a qual dava direto para o espaço aberto, com o sol fervendo. Teria reparado também na água benta que queimava no rosto de Helena, atirada por Jean, que se preparava lentamente, retirando uma estaca afiada de dentro do sobretudo...

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A VERDADEIRA IMAGEM





1)

Quem já suou frio numa noite quente pode imaginar o que senti quando cheguei ao local da cena que vi pela tela do monitor...

Tudo começou de maneira corriqueira. Minha jornada de trabalho já estava quase no fim. O dia já ameaçava raiar e eu precisava fazer apenas mais uma ronda para finalizar o expediente.

Apesar do cansaço causado pela monotonia, parecia que a noite de trabalho terminaria bem. Quase sempre a ausência de dificuldades era a marca principal numa alternância de canecas de café e sessões corujas na TV.

Eu desempenhava a função de agente de segurança num condomínio de casas de alto padrão, um oásis de aparente tranqüilidade para aqueles que podiam pagar. Os muros altos e as guaritas tratavam de isolar a loucura extrema que fervilhava no restante da cidade.

Era um bom emprego. Bem, pelo menos o fato de poder trabalhar armado servia para aplacar um pouco a frustração de não ter conseguido ser um policial de fato, embora, às vezes, eu me pegasse clamando por um pouco de ação. Eu só não sabia que receberia sobre mim, de uma só vez, toda a adrenalina que uma pessoa é capaz de suportar.

Agora eu sei que se tratava de um aviso, o arrepio que senti quando olhei para a lua morrendo pelo vão da janela. Eu devia ter atentado para esse detalhe, mas, infelizmente, não percebi. E, antes de sair para a ronda, fui alertado por um fato totalmente inusitado na tela de um dos monitores de segurança: um casal, totalmente despido, se engalfinhava despreocupadamente apoiado numa árvore, e logo em frente à casa do desembargador.

Alcancei a lanterna, pois o dia ainda não havia derramado plenamente sua luz, e parti rumo ao local. Finalmente parecia que a derradeira ronda teria algum propósito, embora o fato a ser repreendido fosse demasiadamente tolo.

Percorri apressadamente as três quadras que separavam minha cabine de trabalho do ponto a ser averiguado, estava ansioso para colocar aqueles moleques para correr. No entanto, o que o facho de luz da lanterna clareou estava definitivamente longe demais da imagem que eu esperava ver.

A garota, bem, a garota estava subjugada por um dos braços do seu par, mas o rapaz não exibia os contornos que eu havia visualizado na tela do monitor, pois aquilo, aquilo que estava diante de mim, não era humano!

Perdi o fôlego! Tentei a todo custo levar oxigênio aos pulmões, ao mesmo tempo em que buscava manter a força nas pernas. Eu estava frente a frente com uma criatura demoníaca, sem sombra de dúvidas. E esse fato contrariava totalmente o que até então eu acreditava.

Os traços esguios da fera exibiam um tom extremamente enegrecido pelos fios espesso e eriçados que revestiam plenamente a superfície do seu corpo. Ao perceber minha presença, o demônio largou a menina, deixando-a cair no pavimento cimentado, o qual, rapidamente, foi lavado pelo sangue que esvaía em profusão do ferimento aberto em seu pescoço. Ela estava morta. As órbitas vazias em sua face denunciavam a inexorável verdade.

Caminhando em minha direção, o assassino revelava a total natureza de sua identidade: uma cabeça enorme e canina, de onde um olhar tão vermelho quanto o sangue recém derramado se mostrava. A criatura parecia ansiar por mais, por muito mais.

Engatilhei a pistola e, sem titubear, acertei dois tiros na face horrenda do monstro. Porém, ele continuava a caminhar decidido a por um fim em minha existência. Disparei mais duas vezes. O sangue negro espirrou em todas as direções! Ele me agarrou pelo pescoço, meus pés deixaram o chão. A rigidez do aperto deslocou meu maxilar. A fera arfava. O veneno do seu hálito me desnorteava ao ponto de quase me fazer perder a consciência.

Com muito custo, disparei mais uma vez. O tiro o atingiu na parte inferior do focinho. Uma mescla de saliva e sangue passou a verter diretamente do ferimento aberto para minha garganta. Um gosto amargo parecia destruir minha fé na vida. Como se uma serpente se retorcesse em meu estômago, regurgitei uma massa gosmenta, eu estava prestes a sufocar com meu próprio vômito. A escuridão nublava-me a visão. Não sei como, mas consegui erguer a pistola uma vez mais. Ao mesmo tempo em que executava o esforço derradeiro, um grande estalo, que por pouco não arruinou meus tímpanos, se fez ouvir. Então, o demônio gritou. Eu seria capaz de jurar que havia sido de dor.

A pressão em meu pescoço diminuiu. Com isso, aproveitei a chance e descarreguei o restante da munição sobre o maldito. Mas, quando o último projétil o atingiu, ele já não exibia os traços demoníacos. Era novamente um homem. E quando os primeiros raios de sol o tocaram, a identidade daquele rosto se revelou: era nada mais, nada menos, que o filho mais novo do desembargador.

Ainda abalado, tomei o pulso do rapaz para confirmar a certeza que me dominava: ele estava morto!

O desespero me invadiu. Não adiantaria argumentar, em qualquer hipótese que eu pudesse levantar só haveria uma constatação: minhas balas seriam encontradas no corpo do garoto.

Mas havia uma esperança. Todo o monitoramento era gravado. Se eu pegasse o DVD na cabine de segurança seria possível provar minha inocência, pois o monstro apareceria para quem quisesse ver.

Deixei os corpos estirados na calçada fria e corri o mais rápido que pude. Eu precisava colocar as mãos nas provas antes que o condomínio despertasse.

De forma atabalhoada e urgente, coloquei a gravação para rodar. Mas, para meu profundo desespero, a figura que avançou em minha direção, me agarrou pelo pescoço e foi abatido por minha arma não se mostrava como um demônio. Era o rapaz! Exatamente do jeito que ele era!

Não havia escapatória. Eu seria acusado de assassinato. Tomei o DVD nas mãos e fugi. Seria impossível provar a verdade, e eu não queria parar na cadeia pela morte do filho de um desembargador.


2)

Numa só noite todas as convicções que eu poderia ter acerca da realidade e da ficção desabaram sobre minha cabeça sem cerimônias. Então, no anonimato que a clandestinidade, minha nova condição, me impunha, estudei e procurei desvendar a névoa que costuma camuflar a nitidez da verdade que nos cerca. E, da mesma forma que um morto-vivo não reflete num espelho, descobri que um demônio da lua não revela sua verdadeira face em outro meio que não seja sob o véu da luz branca que vem do céu. Por isso a gravação não captou os contornos da besta.

Aprendi, também, que o chumbo pode fazer mal a parte humana da criatura, mas não pode ferir a fera. Assim, com a chegada de um novo ciclo, o demônio inevitavelmente ressurgiria dos mortos, com sua face mais nefasta a homenagear a lua. Mas, uma esperança ainda resta. A prata, essa sim, com toda a sua nobreza pode por um fim definitivo na vida de agouro do amaldiçoado.

De poucas coisas posso me orgulhar na vida, dentre estas, os bons contatos que fiz ao longo dos anos, os quais, na hora certa, mostraram seu valor. Enquanto antigos amigos me viraram o rosto, os agentes certos, pelo preço justo, me estenderam as mãos. Sem a ajuda de um excelente armeiro artesão, eu não conseguiria uma peça única e letal para aniquilar o monstro.

Posso não ter mais emprego. Posso não ter mais perspectiva ou mesmo uma vida. Mas ainda tenho meu caráter, e isso ninguém pode me tirar. Ainda naquela noite, tudo estaria acabado.

3)

Não foi difícil chegar ao local que deveria ser de descanso eterno. O pobre rapaz poderia ate não ter culpa pela natureza maldita que o dominava, mas ele iria pagar assim mesmo. Não seria certo deixar a matança continuar.

Assim esperei por horas, até que a lua derramasse seu lamento diretamente sobre o jazigo do endemoninhado. Logo, como eu havia previsto, um urro das profundezas do inferno tomou de assalto o campo santo.

Engatilhei o revólver e aguardei. Não tardou para que concreto, mármore e madeira voassem pelos ares. A criatura estava livre. E, com a vingança a escorrer pela língua que pendia da boca escancarada, ela me olhava. Dentes alvos e longos refletiam o luar.

Ergui as mãos apertando firmemente o cabo de madrepérola da arma. A besta chacoalhava as patas de forma ameaçadora. Mirei no centro daquela cabeça descomunal, mas, no instante decisivo, não pude atirar...

No tambor só havia uma bala de prata, um único bilhete para a libertação. No fim das contas, um enorme problema. Da maneira mais dolorosa possível, descobri que a mesma lua que despertara a fera dos mortos agia também em mim. O veneno da besta, aquele que caíra em minha garganta em forma de sangue e saliva, corria agora em minhas veias. Ao som de um estalo, eu começava a mudar...

Uma escolha estava em minhas mãos: seria ele, ou eu. Com filetes salgados escorrendo pelo meu rosto quase canino, fiz um esforço imensurável para manter a sanidade. Seria impossível admitir como minha a natureza demoníaca de uma fera inumana.

Enquanto a prata silenciava o clamor em meu cérebro, e a chama da vida lentamente se esvaía do meu corpo, ainda vi a sombra do filho do desembargador a correr sob a luz da lua em busca de sangue. Eu jamais poderia me tornar aquilo, pois, apesar de tudo, era a de um homem a verdadeira imagem em mim incrustada. 

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Prêmio Henry Evaristo de Literatura Fantástica


REGULAMENTO

1. O presente concurso, promovido pelo site A IRMANDADE (www.airmandade.net) possui caráter exclusivamente cultural, sendo gratuita a sua inscrição.

2. Este certame cultural tem a finalidade de estimular a produção literária no gênero terror, horror sobrenatural, premiando obras inéditas de autores em língua portuguesa.

3. O concurso é destinado a autores domiciliados no Brasil, desde que maiores e capazes, que apresentem textos totalmente inéditos em língua portuguesa.

4. Serão admitidas as inscrições ao certame até a data de 31 de julho de 2012.

5. Os contos deverão inserir-se no gênero terror e não poderão:
(a) causar danos materiais e/ou danos morais a terceiros;
(b) conter dados ou informações que constituam ou possam constituir crime (ou contravenção penal), ou que possam ser entendidos como incitação à prática de crimes (ou contravenção penal);
(c) constituir ofensa à liberdade de crença;
(d) revestir-se de conteúdo que implique discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional ou regional;
(e) implicar violação de norma legal;
(f) ter a intenção de divulgar produto ou serviço ou qualquer finalidade comercial;
(g) fazer propaganda eleitoral ou divulgar opinião favorável ou contrária a partido político;
(h) ter sido produzidos por terceiros.


6. Somente serão aceitas inscrições que preencham todas as condições necessárias, realizadas dentro do período estabelecido no item 4, supra, e através do procedimento previsto neste regulamento. Os dados fornecidos pelo participante, no momento de sua inscrição, deverão ser corretos, claros e precisos. É de total responsabilidade do participante a veracidade dos dados fornecidos.

7. Cada autor poderá participar com apenas 1 (um) conto.

8. Os contos deverão ser redigidos em arquivo com extensão doc, nele constando o título da obra e o nome do autor. O corpo do texto não poderá ter mais que 4.000 palavras, escritos na fonte arial, tamanho 10, sob pena de desclassificação sumária.

9. O arquivo contendo o conto deverá ser anexado, por e-mail, ao seguinte endereço: premiohenryevaristo@gmail.com Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo.

9.1 No corpo do e-mail, o autor deverá registrar as seguintes informações:
a) Nome completo do autor;
b) nome artístico ou usual;
c) nome da obra;
e) RG (ou documento de identidade equivalente)
f) endereço completo;
g) pequena biografia do autor (até 10 linhas).


10. É vedada a utilização de trechos ou totalidade de obras já publicadas. Uma vez constatada a utilização, o conto será desclassificado.

11. Os contos serão analisados por uma Comissão Julgadora, composta por membros Fundadores do site, cujas decisões serão soberanas e irrecorríveis.

12. A avaliação dos contos será realizada com base nos seguintes critérios:
a) adequação aos gêneros de que trata o item 2;b) originalidade;c) imaginação e criatividade;d) apuro estético;e) qualidade técnica e correção gramatical.

13. Serão selecionados até 10 (dez) contos, que serão publicados num ebook digital, o qual será disponibilizado para download no site A IRMANDADE, de distribuição gratuita, e todos receberão livros de Literatura fantástica.

14 – O ebook digital contendo os 10 contos selecionados será publicado nos formatos pdf (computador), epub (para tablets como o ipad, galax table e outros) e mobi ( Kindle).

15. Os livros serão enviados pelo correio e assim distribuídos:
Vencedores:
01 º lugar: 13 Livros
02 º lugar: 8 Livros
03 º lugar: 6 Livros
04 º lugar: 4 Livros
05 º lugar: 3 Livros
06 º lugar: 2 Livros
07º lugar: 2 Livros
08 º lugar: 2 Livros
09 º lugar: 2 Livros
10 º lugar: 2 Livros

16. A divulgação do resultado do Concurso será realizada no site A IRMANDADE até o dia 20/08/2012.

17. A entrega dos prêmios far-se-á, via correio, logo após a divulgação dos autores vencedores.

18. No caso de fraude comprovada, o vencedor será excluído automaticamente do concurso e o site A IRMANDADE terá o direito de premiar o participante subsequente, conforme o ranking de colocados definido pela Comissão Julgadora, quando da apuração dos vencedores, desde que preenchidos os requisitos básicos constantes neste regulamento.

19. Os prêmios são pessoais e intransferíveis. Em hipótese alguma, os vencedores poderão trocar os prêmios ou recebê-los em dinheiro.

20. A inscrição no concurso implicará, sem ônus para o site A IRMANDADE:
a) a autorização, por tempo indeterminado, do uso, pelo site A IRMANDADE, da imagem do participante nos sites da internet, voltados à divulgação deste Concurso.b) a autorização à publicação do conto, ainda que não classificado, no site A IRMANDADE e no ebook digital de circulação gratuita.”c) a autorização de revisão gramatical do texto na fase pré-editorial.d) a cessão gratuita dos direitos autorais patrimoniais para a publicação no referido ebook digital e no site A IRMANDADE.

21. Eventuais dúvidas relacionadas com este concurso e seu regulamento podem ser esclarecidas no topico do fórum

22. Para todos os efeitos legais, os participantes do presente Concurso declaram ser os legítimos autores dos contos inscritos e garantem o ineditismo dos mesmos, responsabilizando-se e isentando o site A IRMANDADE e seus mantenedores de qualquer reclamação ou demanda que porventura venha a ser apresentada em juízo ou fora dele.

23. O site A IRMANDADE reserva-se o direito:
a) de alterar qualquer item deste Regulamento, bem como interromper ou cancelar o Concurso, se necessário for, por meio de comunicação em página do sítio. Se os participantes inscritos não concordarem com os termos alterados, poderão cancelar a inscrição de participação no Concurso, a fim de se liberarem das obrigações ora assumidas.
b) de deixar de outorgar premiações, todas ou algumas, inclusive as menções honrosas, caso a Comissão Julgadora:
1) considere que o conjunto de obras selecionadas não seja suficiente à formação um ebook de qualidade satisfatória.
2) julgue que as obras enviadas não satisfazem os requisitos mínimos de classificação.

24. A participação neste concurso cultural não gerará ao participante e/ou contemplado nenhum outro direito que não esteja expressamente previsto neste Regulamento.

25. A participação neste concurso implica a aceitação total e irrestrita de todos os itens deste Regulamento.

26. Os casos omissos serão resolvidos pela organização dos membros fundadores e convidados do site A IRMANDADE.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

DE AMOR E DE SOMBRAS


A literatura, independente do gênero, sempre traz em si a essência do ser humano. E o amor é um dos sentimentos mais caros, complexos e inquietantes que assolam a humanidade. Por amor se morre e por amor, se mata; por amor, vive-se e deixa-se viver. Guerras, maravilhas e grandes sacrifícios já o tiveram como eixo.
Na antologia De amor e de Sombras, o leitor não encontrará o lado mais idílico e singelo desse sentimento. E sim, o que ele pode apresentar de mais sombrio, egoísta e insano; misterioso, surpreendente ou simplesmente, aterrorizante.

Ou seja, o devastador efeito do amor.

E as criaturas mais inusitadas do universo sombrio.

Prefacio de Nelson Magrini

Autores:
Afonso Luiz Pereira
Alexandre Ribeiro

Thato Bordin

Lino França Jr.

Tânia Souza

Flávio de Souza

Paulo Soriano

Luiz Poleto

Victor Meloni

Ramon Bacelar

George dos Santos Pacheco

Elsen Pontual

Gustavo Aquino dos Reis

Luciano Barreto

Leonardo Nunes Nunes

A antologia De Amor e de Sombras é uma parceria entre A Irmandade e a Infinitum Libris.

Previsão de lançamento: 2012



segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A GAROTA DO PORÃO




I



Moscas, ratos, abutres e toda sorte de carniceiros oportunistas disputavam arduamente cada migalha nas pilhas de restos humanos que se aglomeravam em amontoados cada vez mais altos no pátio principal do castelo. Eram pés femininos, todos destros, de diferentes contornos e tamanhos, cada qual trazia nas ranhuras da pele sua própria trajetória, uma jornada trilhada a cada passo com a antiga dona, até a extirpação gratuita. As meninas, de sonhos e corpos mutilados, tinham em comum a esperança de viver uma vida melhor, alcançando uma nova perspectiva em meio ao caos. Fome, pestilência e dor eram agentes corriqueiros no cotidiano do Principado, uma verdade imutável com a qual foram obrigadas a conviver e crescer.

Durante a árdua caminhada em busca de redenção, além dos anseios, as jovens camponesas compartilharam um triste e semelhante destino. Ao longo da caçada desumana, da qual todas foram vítimas, muitas tentaram a todo custo fugir, mas não obtiveram êxito e foram alvejadas sem piedade. Com o coração transpassado por uma mortífera e afiada seta, cada rebelde tombou sem vida, mas ainda assim não foram poupadas de um derradeiro ato bárbaro. Tal qual as que se mantiveram resignadas, cada uma teve o tornozelo direito macerado pela lâmina certeira de um machado de cortar lenha.

Sonhos despedaçados. Desejos derramados no chão. Decepções refletidas no espelho vermelho de poças pecaminosas. Os membros arrancados eram testados na forma única de um calçado improvável. As repetidas frustrações eram lançadas na hedionda coleção de carne em decomposição.



II



O Festejo Público Bimestral era o ato mais importante e esperado em toda a região. Era a ocasião em que o Príncipe oferecia um baile oficial à comunidade, oportunidade na qual uma jovem das cercanias era selecionada para fazer parte da corte. Mas a sorte grande exigia um preço: uma vez escolhidas, as moças nunca mais poderiam ser vistas em público novamente. Cerca de cento e vinte jovens já haviam sido elevadas de classe nos últimos vinte anos, desde a época em que o soberano resolvera fazer morada no castelo da província, vindo de outra parte do seu vasto domínio. Muitas eram as histórias acerca da riqueza e fartura que rodeavam as felizardas. Não havia uma só menina em todo o Principado que não suspirasse pelo mundo de sonhos escondido pelas paredes de pedra do castelo.



III



“Não há a menor possibilidade de você nos acompanhar ao baile, maldita. Você não é e nunca foi da família, nem mesmo quando o inútil do seu pai, aquele infeliz com o qual me casei, ainda dividia esse teto conosco, antes de desaparecer no mundo em suas andanças. Você, peste asquerosa, não passa de um estorvo cuja única serventia é arrastar os joelhos pelo assoalho a fim de pagar pelo prato de comida que consome.”

As palavras rudes da madrasta não doíam tanto quanto a constatação da realidade, pois, mesmo de forma perversa, a velha não deixava de ter certa razão. Desde que o pai saíra em viagem de negócios para nunca mais retornar, ela fora rebaixada à categoria de reles serviçal. Uma ninguém cujo direito de sonhar havia sido revogado por culpa das circunstâncias. Ao mesmo tempo em que sentia falta dos braços daquele que sempre a cobriu de cuidados, ela também o odiava, maldizia o dia em que ele a deixara sob o jugo de tão nefasta criatura.

Pela única entrada de ar do cômodo que chamava de quarto, mas que não passava de um úmido e escuro porão, a menina enxergava parte de um céu limpo e sereno. Os contornos amarelados e vivos da lua destacavam-se no tapete escuro e salpicado de pontos luminosos. Ela queria seguir para qualquer lugar, um porto seguro e distante, desde que fosse para muito além daquela ínfima manifestação de beleza natural. Porém a imagem projetada através do quadrilátero protegido por barras metálicas era a lembrança crua e direta da importância que sua existência significava para a madrasta e irmãs postiças: uma prisioneira, uma escrava sem direitos ou vontade própria.

A tristeza em seu coração era evidenciada pelas lágrimas que começaram a escorrer pela superfície alva do seu rosto. E, como se o céu, antes claro e intenso, se sensibilizasse com o estado de espírito que lhe abraçava naquele momento, repentinas nuvens surgiram e se espalharam de modo amplo pelo manto noturno, obscurecendo completamente as centelhas celestes. A imagem da esfera pálida ainda permaneceu por alguns segundos retida nas retinas da menina, mesmo depois de a lua ter sido engolida pela avidez da tempestade que se formava.

Não tardou para que a fúria dos céus desabasse em forma de pesadas gotas. Os gritos do vento, com açoites insistentes e violentos, atiçavam ainda mais o temor que corroía a sensibilidade cada vez mais abalada da estrutura emocional da garota. Amedrontada, ela se recolhia num canto do porão, abraçada aos joelhos, enquanto tentava conter o choro entoando uma antiga canção, uma melodia infantil que por inúmeras vezes imaginara a mãe, que não chegara a conhecer, cantando baixinhos junto a seus ouvidos.

A chuva entrava pela janela gradeada em caudalosos jatos que escorriam fartos pela parede embolorada. A menina teria subido as escadas e derrubado a madeira do alçapão que a trancafiava, mas as correntes e grilhões em seus pés impediam que se movimentasse para além dos domínios do estreito cômodo.

A chama da única vela já havia sido apagada desde as primeiras lufadas do vento gelado. A escuridão do ambiente só não era maior do que as trevas que tomavam o coração juvenil. Ela gritava, mas sua voz não conseguia competir com a violência da tormenta. Involuntariamente, a canção tornara-se uma incontida prece. As palavras murmuradas escapavam dos lábios como as folhas de uma árvore no outono. Uma vez liberto, o clamor ganhava o ar, ribombava nos tijolos expostos e, imediatamente, se dissipava, tal qual uma essência agradável sendo inalada com sofreguidão.

Nessas horas, invariavelmente, as preces são recheadas por um ingrediente muito específico: o desespero. E, o simples fato de existir alguém a beira do abismo faz com que surjam, ao mesmo tempo, diferentes meios de resgate e sustentação. Em momentos assim, o importante é saber escolher as mãos que surgem oferecendo auxílio. Mas, infelizmente, a urgência costuma nublar qualquer possibilidade de coerência ou discernimento, justamente quando se mais precisa de tais atributos.

Os olhos úmidos da menina focalizaram algo que, a princípio, ela julgou como uma espécie de miragem ou coisa do tipo. Em meio à cortina de água, que se formava na abertura incrustada na parede, era possível perceber as linhas de uma silhueta humana.

Esfregando o rosto a fim de clarear a percepção, ela teve a certeza de que não se tratava de uma alucinação. Havia uma pessoa do outro lado da janela e, com o súbito dissipar da nuvem de vapor, ficou ainda mais evidente a feição da estranha visitante.

A mulher ostentava frescor na maturidade das linhas de sua fisionomia. A beleza que exalava em cada contorno não correspondia a nenhum padrão que pudesse servir de comparação. Era algo frio, artificial, perene. Através dos círculos esmeraldas destacados em sua face pálida, era possível entender que o tempo não significava absolutamente nada para aquela mulher.

Num movimento discreto, a visitante fez a luminosidade voltar a existir nas trevas. Não só na vela solitária, mas em diferentes pontos nas ranhuras das laterais de pedra. Chamas brotaram de forma espontânea em pontos aleatórios nas paredes. As barras de ferro da janela se contorceram como se fossem constituídas pela mais maleável das matérias.

Sinuosa, a visitante atravessou o vão e caminhou até o canto ocupado pela menina. Sem dizer uma palavra, os dedos esguios da estranha deslizaram pelo ferrolho atrelado ao delgado tornozelo da prisioneira. A fechadura, sem oferecer qualquer resistência, emitiu um leve chiado antes de se desmanchar na madeira apodrecida do assoalho.

— Quem, quem é você? – A pergunta demorou um pouco a sair dos lábios da recém liberta, como se ela custasse a acreditar no que acabara de acontecer. Até então, a possibilidade real de receber ajuda de alguém era algo inconcebível.

— Uma opção, querida. Sou a sua possibilidade de salvação. Mas preciso saber se você está, de fato, disposta a ser salva.

— Eu faço qualquer coisa para ter minha vida de volta.

— Qualquer coisa?

— Qualquer coisa.

— Diga-me, você gostaria de ir ao Baile Bimestral?

— Minha madrasta jamais deixaria. Apenas membros de famílias constituídas são dignos do convite, e eu...eu...bem...ela não me reconhece como parte da família...

— Você não respondeu à minha pergunta. Você quer ou não quer ir ao baile?

— Sim. Só em ter a possibilidade de circular ao ar livre já seria uma benção em minha vida, quanto mais a oportunidade de conhecer o castelo do Príncipe.

— Ou ser escolhida por ele...

— Não sonho com tanto...

— Eu posso fazer com que você seja a escolhida, desde que você siga à risca o que eu disser.

— Sim. Eu sigo...eu faço qualquer coisa...

— Pois bem, escute...

IV



A carruagem que conduzia o mensageiro finalmente chegava à área mais isolada do Principado. Como era costume, nenhuma região poderia ficar de fora do grande evento, nem mesmo as partes menos favorecidas. As estreitas vielas de terra batida dificultavam a passagem do vagão, cujas rodas ficaram atoladas na lama produzida pela tempestade da noite anterior. O cocheiro, olhando pela pequena portinhola da cabine, meneou a cabeça de forma negativa. O mensageiro, por falta de opção, decidiu saltar da viatura e seguir a pé a fim de cumprir a missão a ele delegada.

O sujeito atarracado, de tronco espesso e olhar vazio, não hesitou em pousar as botas de couro nas poças barrentas. Poucas casas restavam na região, bem menos do que da última vez em que estivera naquele antro de decadência e penúria.

De imediato, seus olhos fitaram a menos deplorável das residências. Não que a estrutura composta por pedras cruas e madeira carcomida exibisse um diferencial digno de menção, mas a tentativa evidente de conservação fazia com que se destacasse diante das demais moradias.

Muito daquele esforço na manutenção da casa só existia pela presença da menina que passava as noites no porão, local que era terminantemente proibida de limpar, embora todos os outros cômodos devessem refletir asseio em cada recanto.

O homem não costumava guardar nomes ou fisionomias, tal fato era irrelevante em sua missão, afinal, nenhuma das moças importava além do propósito único para a qual serviam. A não ser que alguma delas fosse “a” pessoa correta. Para o resto, bastava que fossem jovens e saudáveis que já estava de bom tamanho. Era assim há bastante tempo, em todas as províncias e vilarejos visitados pelo Príncipe.

O mensageiro resolveu seguir direto para a casa em destaque. Antes mesmo de bater na madeira, a porta se abriu como se o visitante já fosse aguardado.

— Bom dia senhorita – os olhos vazios do vassalo faiscaram diante da jovem que lhe oferecia um belo sorriso. Por mais que o homem não guardasse fisionomias, ele tinha a mais absoluta certeza de que se tivesse visto aquele rosto antes, jamais teria se esquecido.

— Bom dia, senhor!

— A pessoa que responde pela casa está?

Por um instante, a menina hesitou. Os membros de cada família, desde as nobres até as mais humildes, devem exibir tatuados na pele os ideogramas que representam sua linhagem. Os símbolos são mesclados conforme os casamentos ocorrem. Somente os párias não detêm nenhum sinal, e como tal são totalmente desprezados pela sociedade.

Desde o desaparecimento do pai, seu símbolo de família fora sumariamente distorcido por uma queimadura a ferro em brasa. A madrasta não queria que os traços de sua linhagem fossem expostos na pele de uma criatura repugnante como ela, assim dizia.

— Ela não está.

— E você, minha jovem, quem é?

— Sou apenas uma criada.

— Tem alguém da família em casa?

— Não. Não tem ninguém aqui.

— Lamento, mas não posso deixar os convites para o Baile Bimestral com alguém que não seja da família.

Mesmo desconcertada, a menina sabia que não havia como recuar. A estranha do porão lhe garantira que o plano funcionaria. Ela achava que poderia obter um dos cartões dourados sem ter de fazer uso do método nada usual sugerido pela mulher. Mas, de qualquer modo, ela já havia ido longe demais. A chance de ser escolhida pelo Príncipe era sua única opção. E, antes que o homem virasse as costas e fosse embora, ela resolveu agir.

— Espere! Espere, por favor.

— Sim?

— Talvez possamos fazer uma troca.

Intrigado, o mensageiro aguardou pelo desfecho da inusitada situação. O que ele não sabia, era que na noite anterior, logo após o encontro com a visitante vinda da tempestade, a menina, aquela mesma com olhar cativante e angelical, subira as escadas proibidas do porão, tão silenciosa quanto um gato sorrateiro. Nas mãos, ela levava um importante instrumento, algo fundamental para a execução do plano traçado por sua salvadora.

V



Ela seguiu diretamente para o quarto da madrasta, a qual, naquela altura, dormia o sono da esperança, vivendo o sonho de ter uma das filhas escolhidas pelo Príncipe.

Uma sombra não seria tão discreta. A menina ganhou as dependências do quarto que só tinha permissão para entrar nas ocasiões de limpeza. Ela trazia no rosto uma expressão doentia, traços que jamais poderia imaginar que fosse capaz de exibir. O ódio cultivado por anos impelia seus movimentos. A bruxa maldita estava ali, indefesa e entregue, repousando diante de sua ira.

Com um único e preciso golpe, exatamente do jeito que a estranha instruíra, ela enterrou a longa e fina lâmina de um punhal na garganta da mulher. Não tardou para que o sangue jorrasse como um rio nos lençóis brancos que ela se cansara de lavar. Mas o líquido precioso não poderia ser desperdiçado. Seguindo o plano, a menina pousou um vasilhame para receber a cascata rubra. Sem perceber, ela sorria para a escuridão, não disfarçando o deleite encontrado no ato que acabara de cometer e, já sentindo a excitação tomar seu corpo, pois ainda faltavam mais duas vítimas. A noite seria longa e extremamente prazerosa.

VI



— E então, minha jovem, que tipo de permuta a senhorita tem em mente?

— Uma proposta que tenho certeza ser do seu interesse. O senhor me fornece um dos convites para o baile e eu lhe dou isto.

Os olhos do sujeito faiscaram pela segunda vez naquela tarde. Para seu completo estarrecimento, a menina, de aparência frágil e inocente, lhe estendia um cesto de palha repleto de garrafas preenchidas até a boca por um líquido vermelho e caudaloso. O homem não compartilhava da mesma natureza de seu senhor, mas ele sabia mais do que ninguém que a fonte de força e riqueza do mestre provinha da essência daquele néctar incomparável.

Apenas alguns membros de sua família conheciam a verdadeira história de vida do Príncipe. Um segredo transmitido em momentos oportunos para poucos descendentes, criteriosamente escolhidos, para guardar e defender os interesses do monarca.





VII



O Príncipe governava a área compreendida desde os pés da muralha de rocha sólida da longínqua e vasta cadeia de montanhas na região meridional do país, até as areias finas e brancas do litoral. Mas o poderoso homem, cuja riqueza nos dias atuais não poderia ser calculada, fora, na juventude, o herdeiro de um trono falido. Apesar da nobreza no sangue, seus ancestrais trataram de minar à exaustão todos os bens da família ao longo do tempo, fazendo com que toda a riqueza fosse reduzida a uma pilha de papéis com dívidas contraídas.

Em desespero, o jovem herdeiro apelou para forças inomináveis, e foi ouvido. A voz das profundezas lhe disse que para ter a eternidade e, consequentemente a possibilidade de riqueza prorrogada de forma ilimitada, bastaria que ele renunciasse a tudo em que acreditava e, o mais importante, que ele sorvesse a vida de sua única irmã, literalmente. Assim ele fez. Sem qualquer remorso, matou em sacrifício o único traço de família que ainda lhe restava e, o que era pior, provou do mesmo sangue que corria em suas veias.

Como resultado de tão hediondo pacto, o Príncipe dominou a ação do tempo em seu corpo. Daquele momento em diante, os anos pouco significariam para ele. Com o auxílio de um aliado tão importante, não foi difícil reconquistar e multiplicar o que sua família havia gasto de forma tão leviana. Mas, via de regra, atos sórdidos não são cometidos sem que sérias conseqüências surjam como uma indesejável companhia.

O líquido da vida, roubado e degustado com intenções execráveis, passou a ser sua salvação e perdição. O Príncipe, além de perder a alma para criaturas indignas de pisar esse plano, se transformou num escravo do néctar rubro. Para manter o corpo são, ele precisava consumir, no mínimo, aproximadamente cinco litros de sangue a cada dois meses, uma jovem mediana, tendo em vista sua predileção pela semelhança física da irmã.

Mas, o que o monarca desconhecia, era o fato de que sua irmã dera luz a uma filha bastarda na ocasião em que ficara fora pelo período de um ano, sob o pretexto de estudo numa das províncias do Principado.Desta forma, o demônio lhe garantiu que o sacrifício não havia sido concluído a contento, pois, aquela criança daria origem a reencarnação de sua irmã em alguma geração futura. Poderia demorar muito tempo, muito mais do que qualquer ser humano seria capaz de imaginar, mas a deterioração em algum momento abraçaria a estrutura corpórea do Príncipe até o seu completo desaparecimento. Assim, como ele já era desprovido de alma, também seria destituído de um corpo, sendo reduzido a absolutamente nada.

Para evitar que um destino tão aterrador lhe tocasse, o Príncipe deveria localizar a criança, impedindo assim que ela pudesse favorecer o ressurgimento da irmã sacrificada.

Ele tentou. Fez tudo que estava em seu alcance para identificar a maldita criatura dentre as inúmeras crianças nas mais diversas províncias do Principado. Chegou a copiar um rei de um tempo perdido, mandando executar todas aquelas que pudessem ser a sobrinha que não lhe agradava. O ato impensado serviu de ensinamento, algo que ele guardaria para sempre, o povo, quando acuado, pode se tornar o pior dos inimigos. Além do insucesso na busca, ele quase viu seu poder ser derrubado pelos revoltosos que surgiram contra a barbaridade dos seus atos.

Mas o Príncipe aprendeu com seus erros. Até então, ele fazia uso da violência desmedida para tomar do povo a quota de sangue que precisava para viver, mas a partir das ameaças causadas pelo medo, ele passou a executar o subterfúgio que considerou perfeito: distribuir esperança e sonho, para colher discretamente o necessário para sua subsistência. As futuras vítimas passaram a disputar a chance de desfrutar dos prazeres do castelo.

Ele nunca achou a criança. As imperceptíveis mudanças em seu aspecto físico contribuíram para que o ímpeto em buscá-la, ou no caso, seus descendentes, diminuíssem consideravelmente ao longo do tempo. Até mesmo o gosto pelo sangue se tornou algo mecânico em sua vida. Ele circulava pelos próprios domínios, e por outros, de tempos em tempos como um nômade abastado mais por conveniência do que propriamente por convicção de que acharia o sangue perfeito.

Durante anos, ele não mudou seu modo de agir: promovia os bailes, escolhia as vítimas, usufruía do seu sangue, e vivia noite após noite. Quando se cansava, procurava outro ponto e continuava sua nefasta rotina.

O povo, tolo e sonhador, nada percebia, ou não queria perceber, acerca da névoa sombria que rodeava os passos do governo itinerante. O próprio rosto do Príncipe era um mistério. Ele raramente aparecia, e quando o fazia, carregava sempre uma máscara sobre a face. Em momentos oportunos, ele assumia a identidade de filhos que não existiam. Herdeiros fantasmas gerados por Princesas que jamais eram vistas. Ele forjava a própria morte e ressurgia sob um novo numeral após o nome, uma identificação que o tempo tratou de apagar. Com o passar dos anos, o governante se tornou conhecido apenas como “ O Príncipe”, nada além disso.

Fachadas. Teatralidade. Mentiras. Enterros secretos com caixões vazios. Casamentos com cerimônias restritas. Nascimentos sem ostentação. A juventude eterna encobria as incoerências. A promessa de ouro atiçava a cobiça. Seria uma estratégia perfeita se não fosse pela ação de um agente indomável. As areias do tempo, apesar de lentas, continuavam a se mover, moldando ininterruptamente as linhas do destino.

O Príncipe sabia que se provasse do sangue perfeito, saberia. Seu paladar nunca mais provara do mesmo gosto experimentado há tanto tempo, mas ele confiava na memória sanguínea incrustada em cada célula do seu corpo.

No entanto, a lembrança, apesar de ainda resistir tal qual uma chama bravia, se mostrava cada vez mais reclusa num ponto perdido do seu existir, talvez sendo sufocada pela deterioração da mente, que, por sua vez, acompanhava o definhar do corpo, exatamente como previra o demônio. As últimas décadas foram cruéis. Pele e músculos perderam força e vitalidade. A cor deixou os cabelos. Os instintos não agiam a contento. As pálpebras não mais se abriam, selando os olhos numa escuridão irreversível. O poderoso e altivo monarca mal conseguia se manter de pé. A única salvação que lhe restava seria localizar o legado de sua irmã e finalizar de uma vez por todas o maldito sacrifício. No entanto, ele sabia que essa possibilidade se mostrava cada vez mais remota e que, talvez, o tempo que sempre lhe fora um fiel escudeiro, resolvesse, no fim das contas, se mostrar mais cruel do que ele próprio fora no decorrer de sua vil existência.



VIII



O vassalo sempre teve vontade de provar dos nutrientes miraculosos atribuídos ao sangue fresco. Mas esse desejo não poderia jamais sair do único local que lhe era permitido existir: os pensamentos. Ninguém, ninguém tinha a permissão do Príncipe para roubar uma só gota que fosse do sangue alheio, o castigo para tal afronta era a própria morte. Mesmo vendo o mestre inoperante no trono, ele já fora testemunha ocular de feitos inconcebíveis por parte do soberano. Portanto, mesmo vendo o senhor debilitado, não era uma boa idéia desobedecer a qualquer uma de suas ordens.

Porém, ele não estava prejudicando ninguém. A jovem a sua frente sim era quem estava lhe oferecendo de bom grado um tesouro inestimável em troca de tão pouco. Se alguém tivesse tomado à força o sangue de outra pessoa, esse alguém era a garota, não ele. De qualquer modo, o convite era para aquela casa, o mestre não faria distinção de quem fosse representando a família. Se ele tivesse sorte, a menina seria escolhida e morta, e esse segredo jamais viria à tona.

— Está bem, senhorita – disse o mensageiro, sem esconder a satisfação – estou disposto a aceitar sua oferta.

— Pois bem, meu senhor, aqui está o que tenho a lhe oferecer.

— E aqui está o seu convite. Seria atrevimento perguntar o que aconteceu com os demais membros da família?

— Seria um atrevimento desnecessário, visto que o senhor não é um homem desprovido de inteligência.

A jovem sorriu ao final da afirmação, no que foi acompanhada de forma desconcertada pelo homem. Antes de deixar o local, o vassalo ainda olhou para trás, no intuito de contemplar pela última vez a beleza sombria da mais recente convidada para o baile, mas só encontrou a madeira da porta a lhe oferecer um adeus seco e decidido.



IX



A menina atravessou os portões do castelo fascinada por cada detalhe focalizado por seus olhos. Sons, aromas e cores tão diferentes dos limites daquela prisão com a qual se acostumara. Ela mal se lembrava de como era o mundo antes da vida com a madrasta. A estranha do porão havia sido clara: os corpos das irmãs postiças e da velha maldita não constituíam uma paga suficientemente alta para manter controlados os demônios que lhe serviriam naquela noite. Portanto, antes do primeiro minuto do novo dia, ela já deveria estar de volta ao lar, pois as bestas não mais se manteriam dóceis, e não fariam qualquer distinção entre as prováveis vítimas.

A carruagem parou defronte à entrada principal da residência oficial do Príncipe na província. A menina sabia que era preciso seguir em cada detalhe as recomendações de sua protetora.

Um tecido de textura e aparência indescritíveis envolvia seu corpo num vestido de corte único. Sua presença monopolizava todos os olhares, uns com inveja, outros com cobiça, mas todos, sem exceção, foram enfeitiçados pelo magnetismo que exalava da jovem.

Durante toda a noite, ela se esquivou de investidas, convites, promessas, súplicas, ameaças e ofensas. O motivo de sua ansiedade ainda não havia aparecido.

Muitas jovens, que chegaram ao baile com o coração pleno de esperança já haviam desistido, pois a certeza de uma disputa injusta dominava suas convicções. Para estas, só restava o consolo de buscar um pretendente decente em meio aos convidados. As que ainda confiavam no próprio potencial tentavam ignorar que, se aquela garota realmente quisesse, o Príncipe não resistiria aos seus encantos.

Quando as luminárias foram apagadas de uma só vez, e toda a iluminação do ambiente passou a responder unicamente pelo crepitar do fogo vivo, que ardia numa gigantesca lareira postada na parte oposta à entrada do salão, todos os convidados se eriçaram. O Príncipe chegava ao recinto.

O velho erguido por quatro serviçais numa cadeira de madeira negra, meticulosamente entalhada e ornada por peças douradas, nem de longe lembrava a figura altiva de outros tempos. Mas, se mesmo decadente o monarca impunha respeito e reverência com a simples menção do seu nome, o que dizer da rara aparição em público?

As jovens correram em sua direção, até mesmo as que estavam acompanhadas largaram os braços dos parceiros, rumo ao sonho de luxo e riqueza. Uma fila se formou diante do monarca. A exceção era justamente a menina do porão, que se manteve altiva em sua posição, apenas observando as concorrentes.

Completamente cego, a percepção do Príncipe já não era tão seletiva ou precisa quanto em outros tempos. Ele também pouco distinguia com o olfato, outrora um instrumento altamente eficiente. Nos últimos anos, para escolher, ele fazia uso do único sentido no qual ainda confiava: o paladar.

Uma a uma, as camponesas passavam diante do Príncipe e lhe estendiam o braço. O monarca, de forma lenta e gentil, deslizava a língua áspera por sobre a pele viçosa das damas. Pacientemente, a menina do porão esperava a sua vez. De acordo com as instruções de sua protetora, ela deveria ser a última a se aproximar do soberano.

As negativas se sucediam ininterruptamente. Uma boa opção se tornava uma sorte cada vez mais rara. Resignado, o governante já cogitava selecionar qualquer uma delas. O sangue serviria para aplacar a necessidade, mesmo que não houvesse gosto algum durante o processo vital. A certeza do desaparecimento do seu existir ficava cada vez mais evidente.

Por fim, o dedo ressequido do soberano apontou para uma garota de cabelos negros e cacheados. Um dos serviçais tratou de conduzi-la pelos braços para as dependências restritas do castelo. Enquanto a felizarda era levada, a menina do porão atravessava o salão de forma decidida rumo ao Príncipe.

A debilidade do governante retardou a cerimônia além do previsto, fato que culminou com a pressa na ação a ser tomada pela última convidada a ser testada. Era quase meia-noite. O horário maldito se aproximava com velocidade contrária aos desejos da garota.

Os passos apressados a fizeram chegar rapidamente ao Príncipe, que já era levado de volta. Com a mão enluvada, ela deixou um pequeno frasco no colo do velho, voltando-se imediatamente para o salão.

Naquele momento, as passadas largas já respondiam por uma corrida desabalada. Curioso, o monarca tomou o cilindro de vidro nas mãos. Uma espécie de calor emanava do recipiente, algo que o fez tremer dos pés à cabeça.

De modo atabalhoado, ele quebrou o invólucro e levou o líquido que escorria dos cacos à boca. O velho urrou. Sua voz ecoou pelo ambiente secular como há muito não fazia.

— Peguem essa mulher! Agora!

A menina já havia deixado as dependências do castelo. As doze badaladas ressoavam forte na torre da capital do Principado. Uma horda de sombras endemoninhadas deixava as cascas vazias dos cavalos e do cocheiro que serviram à moça na condução até o baile. Os demônios espalharam o pânico e o caos entre a multidão que tentava deixar a residência do Príncipe.

A menina do porão já não exibia as linhas finas do vestido com o qual chegara. Naquele momento, ela trajava os mesmo trapos imundos que era obrigada a usar pela mulher cujo cadáver fora devorado pelas criaturas que se arrastavam pelas paredes do castelo.

A única peça do vestuário que se mantinha magnificamente enfeitiçado era o calçado do pé direito da garota, que havia se soltado no salão durante a corrida precipitada.

Como uma mendiga, a jovem se arrastou, mergulhada na enlouquecida multidão, numa tentativa vã de chegar a uma carruagem que já não existia. Em seu lugar, vermes e insetos se misturavam a ossos, pedaços apodrecidos de abóboras e outras plantas rasteiras, além de restos não digeridos de carne fétida.

Por um momento, ela se desesperou. Mas logo seu coração se acalmou quando, em meio aos gritos e mortes, seus olhos fitaram os contornos familiares que ela já tinha enxergado antes, em seu porão, durante uma tempestade sobrenatural.

Sua protetora lhe acenou, e ela seguiu o sinal, encontrando o caminho certo por entre a turba enfurecida.



X



Por pouco tempo, o Príncipe experimentou a vivacidade e o poder de um corpo indestrutível novamente, pois a ínfima mostra, recém adquirida, de sua antiga força fora totalmente consumida durante a expulsão das sombras demoníacas que haviam ousado invadir os seus domínios. Somente um demônio podia habitar esse plano: ele. E todas as outras criaturas rasteiras que se esquecessem disso deveriam ser banidas para as profundezas abissais. A visitante do porão sabia e contava com isso.

Durante vários dias, ele procurou a jovem que lhe ofertara o mais precioso dos presentes, aquilo que ele mais desejava em toda a sua vida maldita: o sangue do sacrifício. Ele tinha pouco tempo para encontrar a herdeira daquele sangue, sugar sua vida até a última gota e se tornar definitivamente vivo para sempre. Seu tesouro estava tão próximo, ele não poderia e não iria escapar dessa vez.

A antiga fúria assassina voltara mais intensa do que jamais existira. Ele já não fazia questão de manter a conduta de discrição e bom senso. Seus homens passaram a espalhar dor e morte em cada vilarejo do Principado. Caso não a encontrasse, tinham ordens para invadir os reinos vizinhos, o monarca queria aquela mulher mesmo que tivesse de proclamar uma guerra contra o resto do mundo.

O único que poderia conduzi-lo diretamente ao objeto do seu desejo já não caminhava entre os vivos. O mensageiro, o mesmo que vira o rosto da menina do porão e sabia exatamente onde localizá-la, morrera consumido pelo próprio desejo de conhecer as propriedades míticas do sangue. Um sangue de criaturas vis. Roubado de forma cruel. Sordidamente maculado por substâncias ancestrais. Um sabor que ele jamais provaria novamente.

As jovens seqüestradas eram obrigadas a experimentar o sapato envidraçado largado pela procurada durante a fuga. Como resultado dos sucessivos fracassos, cada pé direito descartado era separado do corpo da vítima pela força das lâminas empunhadas pelos soldados e, em seguida, atirado no pátio. O intuito da violência era marcar, ainda que de modo estúpido e desnecessário, as moças já testadas e evitar que se perdesse ainda mais tempo com investidas repetidas.

Muitas se recusavam a seguir o séqüito de sangue, e lutavam literalmente até a morte para evitar que fossem brutalmente mutiladas. Mas mesmo com toda a luta, depois de assassinadas, tinham os pés decepados para teste. Um mar de cadáveres tomava as ruas de pedra dos vilarejos.

A distância considerável em relação à capital do Principado havia garantido a paz no mais pobre dos vilarejos durante os primeiros dias de terror, mas a situação estava prestes a mudar. Desde o baile, seguindo a orientação fornecida por sua protetora, a menina mantivera-se em absoluta reclusão, alheia a tudo que acontecia. Ela confiava plenamente na mulher que havia mudado sua vida. A visitante havia lhe dado sua palavra de que a amostra de sangue tirada do seu corpo e entregue ao Príncipe seria sua passagem definitiva para a corte e, consequentemente, para um mundo melhor.

De fato, tudo que a estranha dissera havia acontecido. O mensageiro aceitara a proposta de troca. Da pequena horta, nos fundos da casa, surgira a carruagem que a levaria ao baile. Criaturas noturnas bateram à sua porta para buscar os corpos das malditas e na mesma hora se tornaram eficientes serviçais. E, finalmente, ao soar das doze badaladas da noite, o encanto terminara, liberando a horda ao seu estado natural. Agora, conforme o prometido, era só aguardar a chegada dos homens do castelo para levá-la ao convívio do monarca.

XI



O sono da menina fora interrompido pelo trotar furioso de inúmeros cavalos. O som de gritos e choro era ouvido em todas as direções. Assustada, ela tentou olhar por uma fresta na porta principal da casa, mas tudo que sua visão conseguiu alcançar foi a imagem crescente da sola barrenta de uma bota de caça vindo em sua direção.

A prancha de madeira tombou imediatamente, tamanha a força do golpe. O corpo da menina ficou preso entre a folha de cedro e o chão. Ela não obteve a ajuda que sua voz pedia, pelo contrário, uma mão pesada a ergueu pelos cabelos e a arrastou pelos cascalhos da única via pavimentada da vila.

A jovem chorava extravasando o desespero que consumia seu coração. Ela não entendia o que estava acontecendo. Não deveria ser assim. Afinal, a visitante havia lhe garantido que ela se tornaria uma princesa, que alcançaria um poder inimaginável, mas o cenário ao seu redor em nada sugeria a vida de luxo e riqueza decantada pela estranha.

Várias moças como ela eram espancadas, enquanto eram arrancadas de dentro de suas casas e arrastadas como fardos inúteis. A dor e o agonia que ela experimentava na própria carne também eram vividas pelas vizinhas que nunca tivera a oportunidade de conhecer. De nada adiantavam seus apelos, suas súplicas por piedade. Algumas corriam pela praça e eram alvejadas ser qualquer sinal de compaixão por aqueles homens que emitiam um brilho doentio no olhar.

Como um traste imprestável, tal qual se sentira e fora tratada durante boa parte de sua curta existência, a garota foi jogada na caçamba gradeada de uma carroça. Um lugar pútrido e nauseante, uma lembrança imediata do porão escuro que por tanto tempo ela chamou de lar.

Lágrimas sofridas escorriam pela maciez encardida do seu rosto. Uma visão quadriculada lhe mostrava parte de um céu estrelado e vivo, mas ainda assim melancólico e sombrio. Um arrepio gelado eriçou os pelos dos seus braços, ao passo que uma brisa úmida invadia suas narinas. Cheiro de chuva. Por que sua protetora a abandonara desse jeito? Por mais que ela se perguntasse, não encontrava respostas. Nuvens carregadas tomavam lentamente o céu...



XII



A mais recente remessa de jovens para teste aguardava no calabouço do castelo. Uma a uma as moças eram retiradas e não mais retornavam. Gritos de dor chegavam aos ouvidos das que ficavam nas celas. A menina do porão recolhia-se num dos cantos imundos do recinto. Permanecia abraçada aos joelhos, como costumava fazer quando sentia medo. Ela queria cantarolar a canção que lhe acalmava, mas não conseguia se lembrar das notas.

Todas as prisioneiras foram levadas e, mais rápido do que poderia imaginar, ela se viu só naquele ambiente de perdição, numa agonia que insistia em se alongar. Seu desejo era de que fosse levada de uma vez por todas, precisava acabar com o sofrimento. Mas, como todas as vontades que já tivera na vida, essa também não fora atendida. Seria a última a ser levada.

A esperança de que alguma coisa boa pudesse acontecer já havia se dissolvido em seu peito. E, quando ela viu a imagem carrancuda do carcereiro surgir diante da cela, uma onda de choque pareceu percorrer sua corrente sangüínea. O homem lhe oferecia um sorriso mutilado por entre a profusão de fios espessos e fartos que escondia a pele enrugada do seu rosto.

O vassalo não disfarçava o extremo prazer que sentia ao testemunhar o desespero daquelas pobres almas. Boa parte das terras do Principado havia sido maculada pela aura maligna emanada pelo soberano. Uma essência perversa como a dele, quando liberada após tanto tempo reprimida, facilmente consegue corromper a alma dos mais fracos, daqueles que não conseguem domar a nesga sombria que todo ser humano carrega dentro de si.

— Chegou a sua hora, vadia!

A menina não gritou. Não esperneou. Não se debateu. Até mesmo o choro sofrido, que a acompanhara desde o seqüestro, se reduzira a algumas lágrimas absorvidas pela poeira do seu rosto. A resignação a tomava pelo sussurro que suavemente era soprado em seus ouvidos.



XIII



A menina do porão era levada na direção do altar onde estava postado o sapato de vidro. O trono do Príncipe ficava exatamente defronte ao pilar de granito. Mas o monarca não ocupava o espaço que era o símbolo de poder, não naquele momento.

A silhueta debilitada do homem quase desaparecia nas sombras de um ataúde de linhas rústicas. Em busca de vigor, o corpo ressequido era absorvido pela maciez arroxeada de tecidos seculares. O estofamento, devidamente salpicado por particulados de sua terra natal, lhe garantia apenas um consolo, pois a salvação definitiva e desejada estava nas veias de uma de suas súditas.

Não havia mais espaço para disfarces, nem necessidade de ocultação. A verdadeira natureza do monarca estava exposta para quem quisesse ver. De um jeito ou de outro tudo se resolveria. Ou ele encontraria a salvação que lhe daria o poder para expurgar de vez todos os seus temores, ou definharia até o vazio da inexistência, sendo consumido pela voracidade da própria carne.

Uma lufada mais forte espalhou o pesado ar do salão nobre do castelo. E, conforme o som dos passos se tornava cada vez mais próximo, um aroma adocicado preenchia as narinas quase inoperantes do morto-vivo, proporcionando que uma corrente elétrica percorresse cada célula adormecida do seu corpo. A criatura, que já não exibia qualquer traço humano, abriu os olhos e se levantou, sem usar apoio algum durante o ato.

Não seria preciso experimentar a forma do calçado. Ele sabia. Tinha plena certeza de que a herança maldita de sua irmã estava ali, diante dos seus olhos, ao alcance de suas garras.

O serviçal, que trazia a prisioneira, se colocou, inadvertidamente, no caminho do Príncipe, na esperança de receber algumas palavras do seu senhor. No entanto, ele nada recebera além de um golpe certeiro no pescoço, um impacto tão forte e eficiente que fez sua cabeça rolar pelo mármore do chão, deixando um rastro vivo por onde passou.

A menina não demonstrou temor, parecia estar preparada para o que aconteceria a seguir.

A língua da criatura chicoteava involuntariamente o céu da boca, enquanto uma gosma esbranquiçada escorria pelo arremedo de queixo. Finalmente, ela teria todo o poder que só a imortalidade plena era capaz de proporcionar. Para isso, bastava que rasgasse a garganta daquele frágil e inexpressivo ser, sorvendo a essência de sua vida em homenagem àquele que há muito o abraçara em proteção, tomando para si a alma que um dia tivera.

O Príncipe saltou decidido a resgatar o que lhe pertencia. Um sibilar sussurrante se transformou numa palavra límpida na percepção da menina. A voz disse com convicção: “Agora!”

Os dentes afiados da criatura não chegaram a tocar na maciez alva do pescoço de sua vítima. O Príncipe sentia um torpor irresistível dominar cada músculo do seu corpo. Não havia como se mover. Por um breve instante, ele experimentou algo que já havia se esquecido de que um dia ocorrera em seu organismo: o palpitar ritmado do coração.

No fim das contas, a menina percebeu que sua protetora não a abandonara como chegara a pensar. Pouco antes de ser levada, a voz cristalina da visitante do porão ecoara em sua cabeça lhe dizendo exatamente o que fazer.

Atrelada em sua bota esquerda, ela encontraria uma rígida seta de madeira de lei. Quando o demônio a atacasse, ela deveria ser rápida e precisa. Um único golpe no centro do peito bastaria para domar o ímpeto e a fúria da criatura. Mas o trabalho ainda precisava ser concluído.

Na bota direita, ela encontraria um pequeno punhal de prata. Fazendo uso da lâmina, a menina deveria perfurar a garganta do Príncipe, tal qual fizera com a madrasta e com as filhas desta. Mas agora seria preciso ir além, ela deveria sorver o líquido negro bombeado pelo coração recém ressuscitado.

E assim ela fez. Com uma habilidade talhada pelos trabalhos manuais, a menina atacou a criatura petrificada, retalhando a densa casca que revestia seu pescoço. Uma fonte negra brotou do vão escancarado. Os lábios doces receberam com ansiedade o líquido gelado que escorria.

A garota do porão sentiu um turbilhão de sensações dominarem seu corpo. O conhecimento de eras vividas invadia sua mente. O poder absoluto a tocava. A imortalidade a saudava. Ao provar do sangue do Príncipe, seu irmão em outra vida, ela finalmente finalizava o sacrifício. Desta vez não haveria herdeiros perdidos. O monarca morto era um demônio, e como tal era incapaz de gerar filhos de sangue.

Ela sentia que poderia conquistar o mundo. Sim, poderia, se não fosse pela ação sorrateira de uma haste aguçada de madeira que transpassava seu tórax com violência, paralisando totalmente suas vontades.

Um par de lágrimas negras escorreu pelo rosto da garota do porão. O músculo em seu peito palpitava intensamente. Doses incomparáveis de energia vital percorriam um caminho sem volta em suas veias. Havia chegado o momento exato para o sacrifício.

A visitante noturna, aquela que costumava agir nas tempestades, devorava com sofreguidão o órgão ensangüentado arrancado do peito de sua protegida. O coração, ainda quente e vivo, palpitava nas mãos da bruxa, exatamente como lhe fora instruído durante o pacto efetuado com uma criatura inominável, a mesma que sempre se mostra disposta a atender aqueles que clamam por ela, e que, certamente, ainda teria muitos com quem negociar ao longo de uma falsa eternidade.

sábado, 3 de dezembro de 2011

03º DESAFIO LITERÁRIO DO SITE "A IRMANDADE"




O 3º Desafio Literário do site “A Irmandade” pretende diversificar o sistema de participação baseado em imagens das edições anteriores. Desta vez, a ideia central para participar do certame deverá ser o desenvolvimento de contos pautados numa visão adulta das histórias infantis clássicas. Quando nos referimos “pautados”, queremos dizer que a criatividade pode voar por versões do gênero terror, alta fantasia ou Ficção Científica, buscando uma sintonia próxima, alternativa ou particular de olhar para as velhas histórias infantis de modo mais sombrio, fantástico ou futurístico. Então, Branca-de-Neve e os sete anões, Rapunzel, Cinderela, A bela Adormecida, A bela e a Fera, chapeuzinho vermelho, A pequena sereia, etc, servirão de norte para o desafio literário proposto nesta 3ª edição.

Queremos esclarecer, também, que nesta 3ª versão do Desafio não haverá premiação de livros, pois o objetivo principal da proposta será escolher, dentro de votação nominal no fórum, os 3 melhores textos para compor o e-book dos Premiados do Desafio que deverá ser publicado com destaque no “A Irmandade” até o fim do ano e divulgado nos blogues e sites de todos os Membros fundadores, incluindo um banner de chamada do e-book por algum tempo no front end do site Contos Fantásticos também.

Após a publicação do e-book, a seção “Premiados do Desafio” será limpa, ou seja, todos os textos serão deletados e passarão a ser apreciados apenas no referido e-book.

As regras de submissão para os contos são as mesmas das edições anteriores e segue abaixo:
Cada participante poderá enviar apenas 1 (um) conto, no limite máximo de 3.000 palavras.

Todos os contos serão publicados nesta seção à medida que forem sendo enviados e, posteriormente, os participantes do próprio desafio e os Membros Fundadores irão escolher os 3 melhores textos em votação nominal no fórum do site.

Depois da votação para definir os 3 melhores, os Membros Fundadores poderão, se houver uma quantidade considerável de participantes, escolher mais 2 contos com o objetivo proposto no parágrafo abaixo.
Os 5 escolhidos irão compor, juntamente com os outros 10 contos da 1ª e 2ª edições, um e-book a ser publicado no site A IRMANDADE com destaque para download no front end do site A IRMANDADE e CONTOS FANTÁSTICOS nos 2 primeiros meses de 2012, e divulgação ampla nos blogues e site dos demais membros fundadores. O e-book fará parte do acervo do site pelo tempo em que este estiver online.
Os direitos autorais dos autores serão defendidos através de advertência nas primeiras páginas do ebook no sentido de que se algum texto for do interesse de publicação em outros espaços virtuais ou diferente mídias, os interessados deverão contatar os respectivos autores através de e-mail.



terça-feira, 18 de outubro de 2011

ESTAÇÃO PARAÍSO



O súbito apito da locomotiva me fez despertar assustado. Era como se a máquina quisesse me expulsar após a chegada ao destino final, dizendo: “Dê o fora daqui, não posso fazer mais nada por você.” De fato, as letras entalhadas na superfície enrugada de uma tábua retangular, presa num poste de madeira no lado de fora não deixavam dúvidas: “Estação Paraíso”.

Ao que parece, o sono me acompanhara durante toda a viagem. Não havia mais ninguém no meu vagão, nem mesmo um atendente ou algo do tipo. A me fazer companhia, apenas o vão escancarado da porta metálica oferecendo um convite mudo a quem quisesse entender.

Levantei-me buscando esticar o corpo, a sensação era de que cada músculo estava sendo espremido. A dor indicava que permaneci por muito tempo numa mesma posição. O estofado das poltronas, apesar de bastante antigo, era confortável e muito bem conservado, fato que certamente colaborara para que eu fosse absorvido por um sono profundo.

Estendi os braços a fim de alcançar as bagagens de mão que deveriam estar no compartimento acima do assento, mas o espaço estava tão vazio quanto o ambiente ao meu redor. Após pensar alguns instantes, cheguei à conclusão de que eu não estava tão certo de ter colocado alguma mala no local, minha memória andava meio confusa. Provavelmente, todos os meus pertences haviam sido despachados para o bagageiro principal do comboio. Na verdade, todos não, minha fiel companheira, a velha Nikon L-290, estava postada no banco ao lado do ocupado por mim. Era um antigo hábito capturar imagens ao longo das viagens, mas eu acho que nem cheguei a tirá-la da capa protetora dessa vez. Um novo apito apressou meus passos...

Ao descer do vagão, fui recebido por uma brisa cortante do início de noite. O tecido espesso do paletó não era páreo para o sopro gelado. Curiosamente, não havia mais sinal de nenhum passageiro, a estação estava completamente vazia. Maldição! Eu estava realmente muito lento, demorei tempo demais na cabine, agora não tinha ninguém com quem conversar ou pedir informação. Só me restava resgatar a bagagem e caminhar até a cidade, visto que as dependências locais da área de serviço ferroviário eram tão reduzidas que não comportavam nem mesmo um ponto de apoio. Só havia um elevado, formado por uma plataforma de madeira, com coisa de cinqüenta metros de comprimento, revestida por uma cobertura de telhas cerâmicas, com algumas peças faltantes. Mal dava para notar o tom avermelhado da tinta na estrutura, de tão velha que era a pintura.

A Estação Paraíso se resumia a esse ínfimo retângulo, no qual o vagão da primeira classe parava, assim deduzi, pois era justamente onde eu estava. Os eventuais passageiros dos demais elementos do trem provavelmente desciam ao longo do caminho de ferro, entre os cascalhos da via e sem qualquer abrigo contra as intempéries do tempo.

Apressei o passo para chegar ao compartimento de carga, no intuito de buscar minhas malas, mas um novo apito ecoou e, antes que eu pudesse alcançar meu objetivo, o trem começou a se locomover. Gritei, gesticulei, implorei para que parassem. Mas os apelos foram ignorados sem quaisquer cerimônias. Tudo que me restou foi uma trilha de fumaça balançando ao vento, como um lenço acenando em despedida.

Fiquei na estação ferroviária somente com as roupas do corpo e a câmera fotográfica. E, para piorar minha situação, a noite gelada ainda guardava seus truques: pesadas gotas de uma chuva repentina começaram a espocar contra o telhado.

Agachei-me junto à pilastra central de sustentação, o lugar menos afetado pelas inúmeras rupturas na cobertura. Pensei em retratar a melancolia da situação, mas, pela primeira vez em minha vida, não tinha a menor vontade de guardas as imagens de um cenário. Na verdade, eu não fazia a menor idéia do que eu buscava naquele lugar. O pesar no coração entorpeceu meus sentidos...

Mais uma vez fui tomado pelo susto. O tranco causado pelo peso do corpo pendendo para o lado me fez despertar de modo nada agradável. Pescoço, braços e pernas estavam mais doloridos do que antes. Pelo menos a chuva havia parado, e não era só essa a novidade. Percebi um par de olhos me encarando por detrás dos degraus da plataforma. Levantei-me rapidamente e fui de encontro ao estranho.

- Você, por favor, você.

O menino – logo notei que se tratava de uma criança – ameaçou correr, mas alguma coisa em minha voz o fez desistir.

- Garoto, garoto, me espere, por favor.

Confesso que, ao chegar perto dele, fui tomado pelo desconforto, para não dizer repulsa. Trapos cobriam o corpo esquelético da criança. Sua cabeça alternava tufos de cabelos desgrenhados e sujos, com partes totalmente desprovidas de fio algum. A pele, ferida e marcada, era digna de pena, ao passo que os olhos grandes e arregalados pareciam suplicar por algo que eu não conseguia decifrar.

- Ei, menino. O que houve com você? Alguém te machucou?

Ele nada respondeu. Parecia que não estava disposto a revelar detalhes acerca de sua vida. Então, tentei quebrar o rigor da situação pedindo ajuda, talvez ele se sentisse mais à vontade ao se mostrar útil.

- Você sabe onde posso me hospedar na cidade?

- Todos os que chegam aqui, ficam lá – disse apontando para a parte sul da cidadezinha.

- Ora, muito bem. De que tipo de estabelecimento estamos falando? Um hotel? Pensão? Pousada?

- Lá é lá.

Apesar da resposta curta, o diálogo estava estabelecido.

- Entendo. Lá é lá. Como não poderia deixar de ser, não é mesmo? Então, você merece uma recompensa, deixe-me ver aqui nos bolsos...

- Não quero seu dinheiro, moço.

- Como disse?

- O senhor não tem nada que possa me servir.

Mesmo sem entender tamanha convicção, continuei a revirar os bolsos, em busca de alguma moeda, mas não havia nada. Foi quando a correia que prendia a câmera ao meu pescoço se soltou, levando a máquina ao chão.

- Mas que diabos!

Praguejando, abaixei-me para pegar o objeto e, quando ergui novamente a cabeça, notei que o menino desaparecera. Olhei em volta, mas não havia nem sinal dele. De qualquer forma, já estava mais do que na hora de deixar a estação. Pelo menos, antes de desaparecer, o rapazinho me prestou um favor. Tomei o caminho rumo ao sul.

Conforme eu andava, era invadido pela nítida impressão de que o povoado ficava a uma distância maior do que eu poderia supor. Acho que caminhei por uns quarenta minutos. Cheguei com os músculos em frangalhos, não sei o que teria sido de mim se as malas estivessem comigo.

Deduzi que o local recomendado pelo menino deveria ser o estabelecimento de frente para mim, logo após a única via calçada por pedras, pois não havia qualquer vestígio de movimentação em nenhum outro ponto. Tudo estava às escuras. A exceção era justamente a fraca iluminação que provinha do sobrado.

Caminhei até o local e, mal toquei na folha de madeira, a porta se abriu. No interior do recinto havia muito mais luminosidade do que a vista de fora sugeria. Por trás de uma espécie de balcão de recepção, um senhor de barbas e cabelos espessos e cinzentos acenava em minha direção. Do rosto do homem, só era possível decifrar seus olhos, pois os pelos tomavam todo o resto. E, por mais incrível que possa parecer, ele chamava meu nome.

- Aqui estão as suas chaves. Suba por essas escadas, dobre o corredor à direita, seu quarto fica na segunda porta.

- Como assim? Como o senhor me conhece?

- O senhor tem reserva – ele me disse, de forma áspera.

- Mas eu nem me identifiquei. Como o senhor sabe quem sou eu?

- Só há uma reserva para essa noite, a sua – o velho entrou por uma porta nos fundos do átrio, deixando as chaves sobre a tábua envernizada.

Completamente desconcertado pelo ocorrido, fiz a única coisa que poderia fazer naquelas circunstâncias: fui para o quarto. Um turbilhão de confusão tomava minha mente. Como era possível não me lembrar de absolutamente nada? Tentei, a todo custo, remodelar os fragmentos das lembranças que ainda me restavam, mas eu não conseguia, nem ao menos, me recordar da ocasião do embarque. Eu só sabia que havia um bom motivo, uma razão muito forte, para estar naquela cidade.

Não havia aparelho telefônico no quarto. Nem janelas. Nenhuma moldura enfeitava as paredes, a superfície era vazia e crua. Apenas a cama e uma mesinha de cabeceira preenchiam o ambiente. E, foi justamente quando olhei para o criado-mudo, que percebi o pedaço de papel de verso amarelado sobre o tampo de vidro.

- Uma fotografia!

Exclamei para mim mesmo, ao constatar algo tão familiar em meio ao caos. Mais do que isso, eu conhecia aqueles traços. Sim. Sem sombra de dúvidas, eu os conhecia.

Mesmo com a memória desfigurada, as linhas daquele rosto se mostravam claras para mim. Ainda que de forma indireta, eu havia colocado aquele homem na cadeia...

Eu tirava fotografias num parque, retratava o hábito noturno de alguns animais, quando minhas lentes captaram o que seria uma ocultação de cadáver. O indivíduo fotografado fora capturado, julgado e condenado. Tratava-se de um assassino em série.

Ele jurou vingança. Suas palavras ainda soam frescas em minhas lembranças, algo raro nas últimas horas. Havia uma mensagem no verso do retrato: “Cerimônia de passagem. Hoje. 3:33AM.” Então era isso. O maldito estava morto, e seria enterrado nessa cidade infeliz, por isso eu estava ali. Certamente, queria presenciar o sepultamento de um pesadelo. Era isso!

Olhei para o relógio em meu pulso, parado. Ganhei o corredor pensando no horário incomum marcado na fotografia, provavelmente seria um velório, não o enterro propriamente dito. Mas quando desci as escadas e cruzei os limites da recepção, constatei algo diferente...

Quatro pessoas erguiam um caixão de madeira enegrecida. O menino maltrapilho, o mesmo que eu havia encontrado na estação, se agarrava às pernas de uma delas, enquanto olhava diretamente para mim. Cabe dizer que o aspecto físico dos indivíduos não diferenciava muito do apresentado pela criança.

Já no lado de fora, percebi que havia uma multidão cercando a entrada da hospedaria, como se estivessem se preparando para um cortejo fúnebre. Aproximei-me do ataúde aberto, a fim de constatar minhas suspeitas.

Cercado pelo forro acolchoado de tonalidade violeta, jazia aquele que jurara me matar. O semblante plácido do cadáver escondia a natureza fria que o acompanhara durante a vida. Ele estava melhor assim, morto e impossibilitado de espalhar a dor e a morte novamente.

- Descanse em paz, miserável...

- Você!

Senti um calafrio percorrer minha nuca em direção aos pés. Virei lentamente a cabeça e só então notei que um daqueles homens, por mais absurda que fosse a possibilidade, era o dono da voz que me ameaçara há anos. Ele estava mudado, diferente do corpo que repousava na caixa de madeira, mas era o mesmo homem, sem qualquer possibilidade de erro. Não era um irmão ou outro parente, não sei explicar, mas uma estranha convicção dentro de mim dizia claramente que era o mesmo homem, o assassino que havia me jurado de morte.

De sua cabeça, fios de cabelo se desprendiam com o soprar do vento. Seu olhar parecia querer saltar do rosto mutilado. Dos dentes apodrecidos escorria uma gosma esverdeada, enquanto ele falava se dirigindo a mim.

- Você! Você é um homem morto!

A multidão urrou, aclamando as palavras ameaçadoras do infeliz. Não sei onde encontrei ímpeto para correr, pois as forças pareciam me faltar nas pernas. Abri espaço da melhor maneira que pude por entre os inúmeros braços que tentavam me agarrar. Eu não sabia como fugir, pois, para onde quer que eu olhasse havia um rosto desfigurado a me espreitar.

Continuei a correr, sem um plano traçado, para fora dos limites da cidade. Apesar dos meus temores, as pessoas não conseguiam acompanhar o ritmo acelerado que eu impunha na tentativa de escapatória, pelo contrário, elas se moviam lentamente, numa fila organizada e contínua.

Numa possibilidade inversa à experimentada anteriormente, a distância no sentido contrário parecia reduzir-se consideravelmente. Eu mal havia começado a correr, mas já era possível vislumbrar a velha plataforma ferroviária. A mesma placa, com letras tortas e enormes, apresentava a Estação Paraíso. A salvação estava logo adiante. A chaminé da locomotiva expelia uma nuvem de fumaça esbranquiçada no ar, as portas da primeira classe se abriam no platô de madeira. O apito soava anunciando a partida iminente.

- Não! Não! Esperem! Esperem, malditos!

Meu coração parecia querer saltar do peito. O ar se recusava a preencher meus pulmões. Não havia mais força, só a resistência, a vontade de querer viver. O clamor da turba estava às minhas costas. Como era possível?

Subi as escadas saltando os degraus de dois em dois, a rampa de acesso ao trem já havia sido recolhida, o comboio se movia. Nunca cinqüenta metros me pareceram tão distantes, o conjunto de tábuas que compunha o chão da plataforma parecia se multiplicar. O vagão, o meu vagão, deixava a estação.

- Não! Não!

Em desespero, saltei no espaço compreendido entre a porta semi-aberta e o platô da estação. Por algum milagre, consegui me agarrar a uma das alças de apoio. Meu corpo balançava como um pingente agarrado ao colosso de metal.

Inúmeras pessoas, todas atingidas por algum tipo de deformação, se aglomeravam ao longo da estrada de ferro. Elas gritavam, balançavam os braços, tentavam, de alguma forma, alcançar o trem.

Nunca ostentei muito vigor físico, tampouco fui adepto de práticas esportivas, mas sabia que se quisesse sobreviver, teria de multiplicar a força em meus músculos para converter a simples sustentação num impulso eficiente o bastante para me lançar para dentro do vagão. E assim eu fiz, não sei como, mas fiz.

Pouco a pouco, conforme eu puxava o ar, a situação parecia voltar ao normal. A primeira classe estava vazia, às escuras, mas havia segurança, salvação, afinal. A conexão com o vagão seguinte estava trancada, a porta não tinha maçaneta. Larguei o corpo sobre o estofado de couro da poltrona. Procurei esquecer os problemas por um instante, a vista pelo círculo envidraçado da janela me mostrava que a cidadezinha ficava para trás.

Minha cabeça pesava com marteladas doloridas. Na próxima estação, eu desceria e procuraria um telefone, um meio de me comunicar com o mundo real. Mas, por enquanto, eu deixaria o silêncio curar minha dor. O sono lavaria minha alma...

Acordei com o forte apito do trem. Estávamos parados. Não sei por quanto tempo dormi. O céu escuro mostrava que ainda era noite, ou que seria uma nova noite. A porta do vagão estava aberta, e não pensei duas vezes em descer.

A plataforma estava terrivelmente escura e vazia, tive vontade de retornar para o trem, porém, não tive tempo. Eu mal havia tocado o piso de madeira, quando senti um impacto me derrubando. A rampa de acesso se recolhia rapidamente. O comboio deixava a estação sem qualquer aviso.

Por alguns minutos, fiquei caído com o rosto no chão buscando explicações. E, pela primeira vez, minha mente parecia não querer conspirar contra mim mesmo.

As lembranças eram cristalinas como as águas de uma nascente. Eu estava numa estação ferroviária, fotografando o ir e vir cotidiano, quando senti uma presença às minhas costas. Era ele. O maldito que me perseguia. Não sei como nem quando, mas ele havia escapado da prisão e estava ali, com um olhar ameaçador no rosto e com a sede de sangue nas veias. Ele gritava: “Você é um homem morto. É um homem morto”.

Não deixei que ele tomasse a iniciativa e, antes que pudesse esboçar um ataque, me lancei sobre seu corpo. Despencamos da plataforma, indo de encontro aos trilhos. O assassino estava desacordado, com uma poça vermelha ao redor de sua cabeça.

Muitas pessoas gesticulavam e acenavam para mim, mas eu não conseguia ouvi-las, estava desnorteado, só percebi quando o apito estava próximo demais, então, veio o vazio e o esquecimento, mas agora tudo está tão claro...

Senti um toque nos ombros.

- Você!

- Sim. Eu sei.

Acompanhei aquele homem até a estalagem, na parte sul da cidade.

- O quarto está reservado para você – disse o recepcionista de pelos cinzentos.

- Eu sei.

Fui conduzido pelos dois até o quarto, o mesmo onde havia estado antes. Uma fotografia repousava sobre a mesa de cabeceira, e nela estava estampado o meu rosto. No verso, um lembrete que eu já sabia: “Cerimônia de passagem. Hoje. 03:33AM.” Eu não precisava de espelhos para entender que, como o de todos naquela cidade, meu rosto também estava mudado e, que em breve, eu levaria para algum lugar o meu corpo terreno que repousava num caixão. Depois disso, o quarto ficaria vago para outro retrato.

- Você – disse o homem que já não me causava pesadelos – você não quis me ouvir. Eu estava tentando te avisar. Você é um homem morto.

- Sim. Eu sei. Agora eu sei.

Se no quarto tivesse uma janela, seria possível enxergar, ao longe, uma plataforma ferroviária, e nela haveria uma placa dizendo a todos os que chegam: Estação Paraíso.