sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A ÚLTIMA REFEIÇÃO



A vibração em meus braços me fez despertar, o chamado para a refeição era um indício inconfundível. Não posso negar, a inanição tratara de tomar boa parte das minhas forças nos últimos dias. Manter o constante estado de alerta, característica própria da natureza que me compõe, se tornava uma tarefa cada vez mais difícil de cumprir.

Até mesmo o calor, um ingrediente que costumava me trazer um comedido contentamento, passara a conspirar contra meus anseios, assim que passou a me infligir uma incômoda condição de letargia. Já não era possível perceber as nuanças em meio à escuridão. O doce aroma do sangue nada mais era do que uma lembrança cada vez mais distante. À minha volta, a madeira apodrecida me oferecia uma certeza tão viva quando a fome que dilacerava meu estômago: a morte era o destino final e imediato.

Resignado, eu já esperava que a ínfima luz da existência se extinguisse definitivamente. Foi quando, de repente, os fios da vida trataram de me resgatar das trevas, despertando-me do sono forçado.

Meu corpo se espalhou sobre uma ampla área empoeirada. Os músculos doíam pela falta de atividade. Era impossível encontrar alegria ou satisfação, mesmo diante da possibilidade da quebra do jejum. Eu não buscava prazer naquela refeição, pois a urgência pelo reabastecimento das energias vitais era o que, de fato, importava.

A agonia das vítimas sempre me causou regozijo. Eu costumava deslizar suavemente em direção ao alvo. Meus olhos brilhavam diante da invariável cena. Elas se debatiam inutilmente, tentando, em vão, escapar do meu cerco. Em desespero se contorciam, enquanto meus passos furtivos diziam claramente que a fuga não era um privilégio alcançável.

Mas nada disso importa nesse momento. A pressa move meu caminhar. Como se a última reserva de vigor me impelisse, articulo um salto improvável sobre a presa. Ela ainda tenta lutar, mas para onde quer que se mova, consigo alcançá-la com extrema facilidade. Meu abraço tem a abrangência da morte. Com uma sofreguidão que jamais experimentei, faço uso de alguns artifícios para subjugar a frágil criatura, deixando-a à mercê da minha vontade.

Rasgo a maciez do seu corpo de modo simples e objetivo. Minha boca ávida é invadida pelos nutrientes roubados. Lentamente, a presa para de se debater, entregando-se completamente.

Sugar o líquido nutritivo do seu corpo, até a exaustão, levaria apenas alguns minutos. Mas aproveitei cada gota como se a eternidade acompanhasse todo o processo. E ali ficaria por muito mais tempo, agarrado ao corpo exangue, se a concentração própria do ato não fosse quebrada por uma ameaça perturbadora.

Sempre fui soberano em meus domínios. Impávido e inatingível. Mas, pela primeira vez, senti um indício de aflição ao me deparar com aquilo. Só no último instante consegui escapar da investida certeira contra minha integridade. Fui obrigado a largar a refeição. Mas o pouco que consumi acabou por mostrar-se essencial ao me fornecer um mínimo de energia.

O segundo ataque fez com que minhas pernas fraquejassem. Despenquei de uma altura considerável, mas a habilidade me fez pousar suavemente no solo. O inimigo tentou me atingir a todo custo, de diversas maneiras, um contragolpe se mostrava difícil diante das circunstâncias.

Com a visão periférica, vislumbrei uma reentrância que poderia me levar ao meu covil. Não pensei duas vezes e segui em sua direção. Perscrutei a escuridão tendo o aroma familiar como guia. O maldito tentava me atingir com uma espécie de arma.

Esgueirei-me o quanto pude e venci a distância de modo vertical. Rapidamente, alcancei um ponto privilegiado. Ele estava lá embaixo. Tolo e inadvertido. A vingança sobrepujava qualquer temor em meu peito, ao ponto de escorrer farta pelos cantos da boca.

Não havia mais fome ou medo. Um único sentimento me movia: aquele que respondia pela necessidade irresistível de pular no pescoço do maldito, e despejar nele o ápice da minha cólera.

Num salto, projetei o corpo no ar. A liberdade do vôo sem asas agitava cada pelo que me revestia. Toquei a pele alva e tenra com o mesmo ímpeto que uma flecha rompe os limites circulares do alvo.

Não perdi tempo com divagações. Decidido, fiz uso de minhas lâminas afiadas e nocivas contra a estrutura inimiga. Dor. Muita dor. O inimigo gritava por conta do golpe. Tentei escapar após a ação, mas a réplica surgiu de maneira tão rápida quanto eficiente.

Atordoado, fui ao chão. Cambaleante, o gigante dobrou os joelhos e caiu em minha direção. A distância entre nós era demasiadamente perigosa. Curta o bastante para uma derradeira investida.

A mão espalmada me acertou com pressão suficiente para esmagar meu corpo. O líquido viscoso, que costumava preencher meu tórax, se espalhava numa mancha gosmenta sobre o piso cerâmico. Os oito membros estavam imóveis. Antes de cerrar definitivamente os múltiplos olhos, ainda pude ver a garotinha perder os sentidos ao lado da vassoura com a qual tentara me atingir. O veneno agia rapidamente...

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