terça-feira, 7 de setembro de 2010

A SUICIDA


Seus pés descalços sentiam o toque frio do mármore da marquise. A chuva fina já não incomodava tanto, mas o céu ainda ostentava a face fechada de traços cinzentos e pesados, indício intrínseco de melancolia e desolação.

Ela estava triste, carregava uma dor sufocante no peito, um fardo demasiadamente penoso, quase impossível de suportar. Às suas costas, as luzes indicavam que o vai e vem da cidade não parava, todos estavam alheios ao seu problema, todos com seus próprios dramas pessoais, ninguém ligava para ela, ninguém sentiria sua falta. Sob seus pés, o rio caudaloso deslizava como uma serpente traiçoeira. Tal qual um sorriso peçonhento, as pedras esperavam seu contato como presas afiadas.

De braços abertos, ela sentia o vento balançando seus cabelos. Soluçando, inspirava o ar noturno. O clamor dos céus descrevia sulcos úmidos em seu rosto, um afago gelado da natureza. Seu lamento insistente vertia lágrimas que repetiam os caminhos tortuosos e recorrentes sobre os traços juvenis, lembranças quentes de uma alma em ebulição.

Um passo a frente, a certeza presente em firme convicção. O espaço aberto apresenta-se como um convite irresistível, o fim dos seus problemas. Uma longa distância até o impacto, um curto caminho até a desejada paz. Para isso, bastava vencer o medo e abraçar um vôo certeiro e definitivo em busca da solução.

Era só soltar o corpo... era só deixar o corpo... se soltar...

- Não!

A voz em apelo rompeu o ar como uma flecha, na clara intenção de interromper a insanidade do ato. No entanto, o resultado quase se converteu num absurdo revés. O corpo frágil da menina oscilou por alguns instantes entre o abismo e a salvação. Restabelecendo o equilíbrio, ela conseguiu se sustentar sobre o beiral da ponte. Seu olhar mesclava frustração e surpresa.

- Não faça isso, por favor, moça.

Pela primeira vez, ela hesitou. Não que acreditasse nas palavras daquele desconhecido, o qual parecia demonstrar uma improvável preocupação com seu bem-estar. Mas, se por um lado a decisão já estava tomada em seu coração, por outro ela não desejava se entregar aos braços da morte carregando em sua mente a inquietação proporcionada por aquela intervenção.

- Seja lá qual for o seu problema, garota, saiba que ainda vale a pena viver.

- Quem é você? O que faz aqui?

- Não, não, não se importe comigo. Você, sua vida, isso é o que realmente importa agora.

A garota inclinou um pouco a cabeça para o lado, parecia confusa. Ninguém nunca se importara com ela antes. Mas, por mais que o seu coração quisesse acreditar que viver fosse algo viável, a certeza acerca de sua situação lhe dizia com veemência que não. Pular era a única opção.

- Escute, por favor. O senhor não sabe nada sobre mim, não conhece as causas que me levaram até esse ponto. E, acredite, não há caminho de volta.

- Não diga isso, você é tão jovem. A vida lhe sorri com inúmeras possibilidades.

- O senhor está enganado. A vida só tem me dado dor e sofrimento, e estou cansada disso. Muito cansada. Cansada demais para continuar...

- Por que diz isso, minha filha? Você está doente? Não desista. Procure ajuda...

- Sim. Pode-se dizer que estou doente. Muito doente. Mas não se engane, senhor. Ninguém pode me ajudar. Só a morte é capaz de me trazer algum conforto. Eu transmito a dor, fique longe de mim. Por favor, ninguém merece sofrer por minha culpa...

- Não diga isso... venha... eu te ajudo...

O homem caminhava de forma lenta, porém decidida, em direção a assustada menina. A qual dividia seu olhar entre o vazio reconfortante do abismo e a expressão piedosa do estranho.

- Não! Eu não tenho cura! Eu não quero mais viver, me deixe em paz!

- Venha, eu te ajudo... me dê a mão... me dê a mão...

Os olhos chorosos da menina encontraram as nuvens, e estas pareceram apaziguar seu coração. Ela inspirou profundamente, deixou que o ar preenchesse plenamente seus pulmões, então, aliviada, emitiu um suspiro, saltando, em seguida.

O homem gritou, e o que se ouviu seria capaz de acordar os mortos. Envolto pelo desespero, ele projetou o corpo de encontro à suicida. Seus dedos conseguiram enlaçar, no último instante, um fino tornozelo, mas o choque violento contra a mureta fez seu tronco se elevar sobre o obstáculo, enquanto as pernas descreviam um semicírculo no ar. Desta forma, o único ponto de sustentação passou a ser o outro braço.

- Solte-me! Eu quero morrer! Deixe-me em paz!

A garota gritava e se debatia, numa tentativa furiosa de se desvencilhar da mão que lhe oferecia uma salvação que ela não desejava.

- Não, me ajude a te ajudar, menina. Meu braço... eu não estou agüentando...não caia, por favor, não caia...

- Solte-me, seu estúpido! Desse jeito você vai morrer, você vai morrer.

A força abandonava o braço esticado. Os dedos entorpecidos já não conseguiam sentir o toque áspero do concreto armado. Por um momento, apenas por um momento, o homem sentiu vontade de calar sua consciência. Sentiu-se tentado a ouvir os apelos do seu instinto de sobrevivência. Se ela queria morrer, que morresse só, afinal de contas. Foi apenas um instante, uma fração de segundos, tempo mais do que suficiente para abrir a mão salvadora e, assim, livrar a si próprio do irreversível destino.

Mas, ele não abriu a mão. Não quis carregar o peso da culpa nos ombros. Determinado, ele não quis aliviar a carga numa das mãos, mas a outra já não o obedecia mais...

A queda lhe pareceu lenta, excessivamente lenta. Ele sentiu seu corpo flutuar no ar, enquanto a garganta de pedra aguardava faminta, pronta para engoli-los com uma só investida. Ainda em velocidade incompatível à realidade, a menina se agarrou a ele num último abraço.

O céu se abria na ânsia de não perder um só instante de tão triste espetáculo. Já não chovia. Nos olhos da garota também não havia qualquer vestígio de lágrimas. Mas a água ainda se fazia presente, estava lá para suportar o peso dos corpos em queda livre.

Desviar dos rochedos seria improvável, mas o impacto contra o leito parecia desmentir as probabilidades. Sobreviver ao choque era impossível, mas a busca pelo ar insistia em contradizer as possibilidades.

A menina nadava com dificuldades. Ela lutava contra a correnteza, mas parecia decidida a tirar das águas aquele que se arriscara para salvá-la. Ela deixou um grito escapar da garganta quando sua mão tocou o solo lodoso da margem. O homem respirava com dificuldades, mas ensaiava um sorriso, indefinível a bem da verdade. Era difícil saber se sorria pela própria salvação ou por constatar que obtivera sucesso em sua boa ação. Não importava. Sorria pela felicidade, pelas novas chances, pela vida.

Mas a jovem não parecia compartilhar do mesmo entusiasmo. De algum modo, a aparente tranqüilidade obtida com a certeza do céu nublado, pareceu se dissipar, como se tivesse ido embora com as nuvens...

Seus olhos estavam amarelos, exibiam um brilho tão vivo quanto a esfera plena a lhes observar do alto. Não havia mais inocência em seu olhar, era como se algo maligno ali residisse e estivesse pronto para escapar. A voz suave não ostentava mais sofrimento e desespero, estava, naquele momento, carregada de ira e satisfação. A suavidade dera lugar a um ruído grave e arrastado, quase não lembrava uma voz...

- Eu... não...tenho cura...eu queria...morrer...agora...quem morre...é você...

A lua sorria, enquanto sua filha, mais uma vez, lhe oferecia a morte. Não a morte que sua humanidade reprimida gostaria, mas aquela que a ferocidade recém revelada fazia questão de causar.



Um comentário:

  1. Conto muito bom e muito bem desenvolvido. Porém, eu teria optado por deixar a história um pouco mais abstrata, como uma espécia de reflexão sobre o suicídio. De qualquer forma, o resultado foi muito bom.

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