sexta-feira, 3 de setembro de 2010

GISELE


“Gisele... Gisele...tenho fome...tenho fome...”


Os apelos vinham de um quarto distante do seu. Mas ela ouvia o som como se este se originasse dentro de sua própria cabeça, ecoando insistentemente como um mantra maligno.


“Meu nome é Celly... Celly...”


Ela repetia para si mesma, em pensamentos, pois sua voz já não tinha forças para confrontar o infalível chamado que lhe atormentava todas as madrugadas. O sono tornara-se uma raridade em sua rotina. Ela não conseguia obter descanso nas horas de sol, a necessidade de vigília a impedia, tampouco era tocada pela paz quando a noite chegava. Mesmo quando se sentia entorpecida pela fantasia de um sonho recorrente, a maldita voz rompia nuvens e árvores, tomando toda a cor do seu mundo.


Contornos arroxeados oprimiam o azul de seus olhos, a palidez roubava o viço de sua pele, o vazio preenchia sua alma. Celly buscava conforto nas linhas que devorava com sofreguidão, a insônia lhe oferecia o tempo, mas era a necessidade de liberdade que a guiava através das inúmeras trilhas que vencia, embora nenhum dos caminhos percorridos pudesse quebrar as barreiras da prisão sem grades na qual estava enclausurada. Seu mundo interior não ostentava limites, mas era demasiadamente frágil, sensível ao menor ruído, alérgico ao som de uma voz...


- Gisele! Não está me ouvindo? Tenho fome! Tenho fome!


Uma força avassaladora lhe impelia a obedecer, sem questionamentos, aos apelos que ribombavam nas paredes úmidas do seu quarto. Era algo que ela não conseguia tocar, um mal que a chicoteava há muitos anos, desde que a imagem por ela percebida, quando se olhava no espelho, respondia pelas linhas suaves de uma menina. Aquilo que lhe consumia havia começado desde que fora acolhida pela dona daquela voz, desde que caíra nas garras da mulher que a domava de maneira insana e cruel, impondo sua vontade de maneira crua e fria. Para Celly, só havia uma palavra capaz de traduzir o que sentia quando ouvia aquela voz: medo.


Enquanto caminhava rumo ao chamado, Celly tentava limpar de sua mente as lembranças daquela fatídica noite, maldita noite. Tentativa inútil. Ela ainda conseguia sentir o toque gelado da água fria que caía do céu. Um súbito arrepio eriçou os pêlos dos seus braços, as mãos úmidas esfregavam o rosto repetidamente.


Celly não se recordava da idade que tinha quando fora encontrada. Na verdade, ela não conseguia se lembrar de nenhum evento anterior àquela noite, era como se ela não tivesse existido até aquela ocasião. As lágrimas lavavam o azul dos seus olhos com uma intensidade maior do que a exercida pela chuva despejada pelos céus. No braço infantil, um nome tatuado com letras negras: “Gisele”. Sob sua proteção, acolhida num abraço firme, uma boneca de pano, com fiapos negros a enfeitar a cabeça, e duas pedras de vivo anil estampadas no rosto, lhe fazia companhia. Num dos pés do brinquedo, uma inscrição bordada com linhas tortas: “Celly”.


Primeiro ela percebeu o ar gelar, sensação que nunca mais lhe abandonaria, em seguida, notou que a noite em trevas se tornava mais escura. Não tardou para que ela entendesse que a sombra disforme começava a oferecer, lentamente, uma imagem nítida. Ela não queria ver aquilo, mas a figura insistia em se expor, porque provocar o medo fazia parte de sua natureza.


- Não chore, criança – dizia a mulher de rosto marcado por profundos sulcos – você não está sozinha. Eu tomo conta de você, Gisele. Mas você precisa me ajudar, pois tenho fome, tenho muita fome.


A menina tentou se levantar e correr, mas não havia como fugir. A partir daquele momento, ela foi obrigada a entender que não haveria mais como escapar. Ela sentiu as unhas longas e sujas da mulher apertando seus braços.


- Venha comigo, Gisele. Você não precisa de mais ninguém.


- Não! Não! Me solte, por favor, me solte...


Ela sacudia o corpo numa tentativa desesperada de se soltar. Não por ela, pois tinha plena consciência de que tudo estava perdido, mas sim pela amiga, sua fiel companheira em meio ao terror da tempestade. Era sua obrigação protegê-la.


Percebendo a intenção de sua prisioneira, a velha abriu as mãos e deixou que a menina corresse até a boneca caída numa poça. Mas não foi uma atitude piedosa, longe disso, ela só havia deixado a garota correr por ter um propósito bem definido em sua mente.


- Você não precisa de ninguém, Gisele. De mais ninguém!


A mulher gritava, enquanto exibia um sorriso deformado. Com brutalidade, ela tomou o brinquedo para si, despedaçando-o em seguida, com extrema facilidade.


- Se não me obedecer, você terá o mesmo fim!


A cabeça da boneca foi jogada ao chão. Enquanto era arrastada, Gisele teve a impressão de que a amiga lhe oferecia um último olhar, e isso trouxe um profundo pesar em seu coração: a amargura de não ter conseguido evitar aquele triste fim.


“Meu nome é Celly. Meu nome é Celly”. Ela repetia para si mesma, como se quisesse oferecer a própria vida em favor da boneca, assumindo seu nome para isso. Seus braços doíam, mas a dor física não poderia ser comparada ao que sentia em sua alma, e ela ainda não sabia o que estava por vir...


- Gisele, tenho fome! Tenho fome, depressa com isso!


Os gritos a tiraram do transe, no qual estivera mergulhada por conta das lembranças, como um tapa convincente em seu rosto. Não adiantava resistir, não havia como evitar. Celly apertou o passo a fim de acabar logo com o martírio, teria cerca de vinte e quatro horas até o próximo chamado, poderia mergulhar nas páginas dos livros, um alento para sua alma.


Ela entrou nos aposentos da velha, o cheiro putrefato imediatamente se impregnou em suas narinas, causando-lhe náuseas. Contendo a ânsia de vômito, Celly se aproximou da maldita, levando o alimento que ela tanto necessitava. A mulher estava entrevada numa cadeira feita de ossos polidos. Uma manta avermelhada cobria os tocos do que um dia foram suas pernas. Ela nunca entrara em detalhes sobre como havia perdido os membros, apenas dizia que o mal causado pelo metal fora o responsável.


Celly pensara inúmeras vezes em fugir, afinal, poderia se aproveitar da condição desfavorável de sua carcereira para ganhar as ruas. Mas ela sabia que a maldita não era uma pessoa comum e, mais de uma vez, a mulher pareceu adivinhar seus pensamentos. Com um olhar carregado de ira, ela sempre dizia:


- Tente, Gisele. Tente fugir e você verá o que te acontece. Eu te acho nem que seja no inferno.
Celly não duvidava daquelas palavras. Ela detestava a maneira como vivera nos últimos anos, mas não queria morrer. No fundo do seu coração, ela ainda nutria a esperança de poder tornar reais os fatos e as histórias que vivia nos livros. Torcer por um milagre não parecia mais prejudicial do que sofrer dia-a-dia, e ela se agarrava nisso para poder viver.


- Rápido! Rápido com isso, Gisele! Tenho fome! Tenho fome!


Com a feição fechada, porém decidida, a jovem enrolou a manga comprida de sua blusa, revelando um braço plenamente tomado por um tom de negro reluzente. Em sua pele, já não era perceptível a grafia da tatuagem, pois a coloração havia se mesclado de tal maneira, que a impressão inicial era a de que ela usava outra blusa por baixo da que havia enrolado.


Celly aproximou-se da cadeira. Os olhos da velha faiscavam, a ânsia escorria em saliva pela extensão opaca de suas gengivas expostas. O contato foi voluptuoso e violento. Dois filamentos afiados brotaram, de imediato, da massa gosmenta e acinzentava que preenchia a boca escancarada, fazendo com que a monotonia do vão enegrecido fosse quebrada pela súbita e alva presença. O renovado sorriso da mulher não se intimidou diante de sua missão. Com voracidade, tratou de rasgar a carne que lhe era oferecida, em busca de alívio para a urgência crescente do seu corpo.


Era impossível contornar a dor. Celly tentava, sem sucesso, encontrar um ponto perdido em sua mente, um lugar onde pudesse se esconder enquanto sua vida era drenada. Ela temia, sempre temia, que os lábios ressequidos não encontrassem saciedade antes que a linha tênue entre os dois mundos fosse rompida. Mas, a sorte obtida com o alcance da satisfação contrastava com a frieza da realidade, uma nova madrugada não tardaria a chegar, e com ela, a certeza de mais sofrimento.


O sangue gotejava do ferimento aberto. Com os olhos incandescentes, a velha ainda permaneceu em franca observação por alguns instantes, até que, suavemente, deslizou a língua áspera sobre o braço esticado. Imediatamente, a ferida regrediu e, em seu lugar, surgiu uma nova mancha negra, a qual veio a se unir às demais, numa única e marcante cicatriz.


Quando foi seqüestrada pela estranha, Celly não demonstrava nenhuma dúvida de que perderia a vida, e, talvez, este fosse mesmo o desejo da mulher quando decidiu levá-la. No entanto, por algum motivo obscuro, ela foi mantida viva, passando a participar de uma mórbida rotina. Durante os anos seguintes, ela teve seu sangue roubado rigorosamente a cada noite. O que antes era feito como um capricho por parte da estranha, tornou-se, com a enigmática mutilação, sua única fonte de sobrevivência. A mulher já não saía em busca de alimento, exigia ser alimentada por sua prisioneira.


- Gisele – a voz da velha era entrecortada por uma tosse insistente, que fazia espirrar grossas gotas de sangue enquanto falava – Gisele, você já não é mais a mesma. O teor da juventude começa a abandonar o líquido que corre em suas veias. Sinto-me fraca, como há muito não me sentia. Preciso decidir o que fazer com você, se lhe dou o dom da eternidade, ou se tomo de vez a sua vida.


- Não, não faça isso comigo, senhora. Eu lhe imploro, por favor, quem vai lhe trazer alimento? Como a senhora vai sobreviver sem mim?


- Não superestime seu valor, garota. Eu tenho o tempo ao meu lado. Nada é impossível para mim, e você já deveria saber disso.


O ar se tornou pesado e frio, como se acompanhasse o rigor das palavras proferidas pelo demônio. Uma densa e fétida névoa dominou o aposento. Celly ficou desnorteada com a complexidade das informações que seus sentidos precisaram processar. Ela nunca havia presenciado semelhante manifestação, mas as surpresas ainda não haviam terminado. A jovem ouviu um sussurro incompreensível, mas antes que pudesse se virar, sentiu o contato tão familiar agindo, pela primeira vez, em seu pescoço.


O chão estava distante, ela sentia o toque de ganchos em suas costelas. Era possível perceber o fervor em seu sangue, seu ombro queimava enquanto o líquido escorria. Perder os sentidos seria questão de tempo, Celly via a imagem da boneca, sua amiga lhe oferecia um sorriso enquanto acenava, ela achou que fosse morrer... mas não morreu...


Humana e vampira foram ao chão. O demônio se arrastava para o abraço caloroso de sua cadeira. Celly ouvia o ritmo acelerado do músculo em seu peito...


- Vá para o seu quarto, Gisele. Esta foi apenas uma demonstração, para que você entenda, de uma vez por todas, que eu posso fazer o que quiser, embora eu tenha gasto boa parte do que consumi para isso. Mas não se engane, pois eu não hesitaria em usar até a última gota de energia para te encontrar. Eu te acho até no inferno, Gisele. Até no inferno! Agora, suma daqui!


Celly se levantou cambaleante. Com as frágeis mãos, tentava estancar o sangramento no pescoço, a maldita não havia cicatrizado o ferimento. Ela precisava agir, pois não queria morrer, mas viver às custas dos outros seria muito pior. Não era isso o que desejava para si. Os olhos rubros da vampira a acompanharam até que saísse do quarto.


Enquanto caminhava, uma idéia desesperada e audaciosa começava a tomar corpo em sua mente. Celly precisaria ser forte para colocá-la em prática, afinal, todos os seus princípios e convicções seriam postos à prova. Mas situações urgentes requerem atitudes compatíveis, e ela se agarrava a essa convicção em busca de justificativas. Ela não se lembrava de sua história, talvez carregasse o peso de muitos pecados, quem sabe até de outras vidas, mas passou a acreditar que sua cota de sofrimento já teria sido paga, com sobras, com muita dor e sangue, literalmente. Assim, se convencera de que seus atos seriam plenamente compreensíveis.


Celly aguardou, pacientemente, a chegada da manhã. E, com ansiedade, viu o sol se despedir, a hora de agir se aproximava. Pela primeira vez em muitos anos, ela ousou sair da casa sem autorização. A urgência movia seus passos, ela precisava achar o instrumento capaz de por um fim a sua danação...


Uma tempestade avassaladora tomou conta da noite. As lembranças a assombravam com força similar. Não havia como não deixar de associar elementos tão palpáveis, como a escuridão, o frio e as poças d’água, à sua própria experiência, e com o que estava prestes a fazer.


Celly estava disposta a sacrifícios. Ela estava decidida a macular sua própria consciência, em troca da possibilidade de viver os anos que lhe restavam em paz. Não havia certeza. Não havia fórmula mágica. Apenas a possibilidade de aceitação e gratidão, a história poderia se repetir...


Assim ela entrou no casarão. Trazia em seus braços uma menina chorosa, um rosto triste que a fazia lembrar de si mesma. Sangue novo para o apetite do demônio. Talvez, com um pouco de sorte, a maldita se afeiçoasse ao que lhe era oferecido, e resolvesse tomar a menina para si, como tinha feito com ela própria, anos antes. Com uma nova fonte de alimento, a vampira poderia deixá-la seguir seu caminho, era uma possibilidade remota, a bem da verdade, mas era uma possibilidade...


Valeria a pena sacrificar a vida de um inocente em benefício próprio? Era o que Celly se perguntava a todo instante. Sim, gritava sua alma com toda força, a ânsia pela liberdade circulava em suas veias...


O silêncio sepulcral dos corredores só era quebrado pelos choramingos da prisioneira. A menina estava com medo, mas não estava só, sua algoz compartilhava do mesmo sentimento. Já na entrada dos aposentos da velha, Celly não percebia o usual brilho avermelhado fornecido pelos olhos da vampira. No interior do quarto, os sapatos grudavam em algum tipo de gosma, a garotinha tropeçou em algo e gritou, enquanto apertava o tronco da jovem num abraço desesperado.


Celly nunca soube que havia eletricidade naquela parte da casa, por conta disso, surpreendeu-se quando as luzes se acenderam. Mas a iluminação não foi a maior das surpresas. A pequena tropeçara em, nada mais, nada menos, do que a cabeça da maldita. Espalhados pelo chão, também estavam os braços e o tronco da infeliz.


Num dos cantos do recinto, exibindo um sorriso cínico, estava um homem de aparência ameaçadora. Ele trazia, numa das mãos, duas tíbias reluzentes. Celly não precisou de muito esforço para associar os ossos exibidos à antiga mutilação da velha, bem como ao cenário de terror que presenciava, pois uma enorme lâmina de prata, presa à cintura do estranho, ainda gotejava o sangue negro da vampira. O sujeito retornara para completar o serviço.


Antes que pudesse expressar toda a sua gratidão, Celly foi interrompida pelas palavras do homem, só então se deu conta do que ele trazia na outra mão: um revólver de cano longo, o qual foi apontado, sem cerimônias, em sua direção.


- Morra, demônio!


Dizem que diante da morte iminente, as pessoas vêem os fatos da própria vida se desenrolarem como uma cascata diante de seus olhos. Mas, com Celly não foi assim. Ela enxergou o que seu coração desejava, e isso lhe trouxe certo conforto. Talvez encontrasse a paz que tanto buscava...


Resignada, ela elevou seu pensamento ao encontro de uma certeza: “Deixo um mundo incolor para mergulhar num mundo de fantas...”


Não conseguiu completar o pensamento. Um estampido seco foi ouvido, anunciando o vôo de um projétil letal. O encontro com a prata não lhe trouxe dor, não lhe trouxe desconforto, não lhe trouxe nada. Celly só sentiu o vazio e viu a escuridão...


Quando abriu os olhos, Celly percebeu que estava em outro lugar, demorou para que ela conseguisse encaixar a lógica do raciocínio. Mas finalmente entendeu que estava em um barco, um enorme barco que cruzava um rio de águas vermelhas e de aparência escaldante. Um ato reflexo a fez levar a mão à testa, o sangue ainda brotava, embora não fosse mais rubro como as águas ao redor. O líquido que vertia era escuro, negro como as vestes das inúmeras pessoas que a acompanhavam na viagem.


Celly estava como medo, pois não sabia o que esperar. Mas a angústia da incerteza logo se desfez, dando lugar a uma dor lancinante no coração que já não pulsava mais. Alguns assentos à frente, ela percebeu um brilho cintilante e familiar. Logo, teve a sensação de ouvir uma voz ecoando bem próximo à sua nuca...


“Gisele... Gisele... eu falei que te acharia até no inferno...venha já aqui...tenho fome... Gisele...tenho fome...


A cabeça da boneca de olhos azuis era levada pela correnteza do rio escarlate...






P/ Celly Borges

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