segunda-feira, 11 de abril de 2011

INVASÃO DE PRIVACIDADE


Ele sempre conseguia o que queria. Tendo essa afirmação como certeza, era impossível resistir à confiança que o impelia a mergulhar cada vez mais fundo nos incessantes e cada vez maiores desafios que lhe eram lançados. Nada escapava da perspicácia dos seus olhos. Não havia meta que ele não conseguisse alcançar. Quando escolhia um alvo para suas ações, invariavelmente este vinha a sucumbir perante sua vontade. Ele adorava a si mesmo como se fosse uma divindade. Uma obra-prima da natureza. Ninguém era tão capaz de aproveitar a situação em causa própria do jeito que ele fazia. Emboscadas e perseguições. Sutileza e sagacidade. Ele adorava a expressão de surpresa no rosto de suas vítimas.


No entanto, a convicção plena acerca das vitórias, não importando a ocasião, também pode causar seus contratempos. E, dentre estes, sem dúvida o maior responde pelos contornos da falta de motivação. Até então, todos aqueles que se colocavam em seu caminho, de um jeito ou de outro, acabavam tendo o mesmo fim. Por maiores que fossem os obstáculos durante as investidas, o sucesso sempre lhe oferecia um sorriso ao término de tudo. Com o tempo, o sabor da conquista, que até então era pleno e revigorante, se tornou insípido e insuficiente...


Por meses ficou amarrado às correntes do tédio e da monotonia. Ele já não encontrava prazer nas caçadas. As habilidades especiais, das quais sentia tanto orgulho, já não eram exploradas ao extremo como gostaria. Suas aptidões só lhe serviam para o básico, para a sobrevivência diária. Ele ansiava por algo novo. Desejava uma grande presa. Foi quando a encontrou...


Na verdade, ele já a conhecia das aparições na televisão, mas sempre a julgou desinteressante para seus propósitos. Em sua opinião, ela seria incapaz de lhe proporcionar a sensação de arrebatamento com a qual estava acostumado. Porém, ao folhear a revista, uma daquelas repletas de futilidades como tantas outras, algo o fez mudar de idéia. Era como se na fotografia a expressão facial da entrevistada não condissesse com as linhas descritas no papel. Sim, havia magnetismo naquela presença. Suas pupilas se dilataram diante de tal percepção.


Ele a aguardava nas sombras, como era de costume. Cada passo da mulher havia sido cuidadosamente estudado dia após dia. E, durante esse período, ele não obtivera nenhuma oportunidade real para atingi-la como gostaria. Mas ele não tinha pressa, cedo ou tarde a sorte lhe acenaria. Seu olhar privilegiado desbravava com facilidade os limites impostos pela escuridão. Ele percorria cada detalhe das suaves linhas do rosto feminino. Era impossível impedir que um discreto sorriso se formasse, tamanho era o fascínio por aquela imagem.


Pacientemente, ele esperou que a mulher terminasse o jantar. Como de costume, as refeições noturnas eram feitas sempre no mesmo restaurante. E, em todas as ocasiões, ela fazia questão de ocupar a quarta mesa à esquerda no setor reservado do espaço. Ninguém a acompanhava, em hipótese alguma. Ao mesmo tempo em que o hábito facilitava a tocaia, a repetição era uma aliada fiel da invariabilidade dos fatos.


Como sempre, ela fez questão de pagar a conta, embora não fosse necessário. Sua simples presença no estabelecimento já bastava para reverter em lucro qualquer gasto que pudesse gerar. Mas, ainda assim, o cartão de superfície platinada foi utilizado.


Enquanto ela cruzava o amplo salão, atraindo olhares curiosos e flashes, um veículo já a esperava na entrada. Ela nunca dirigia o próprio automóvel, era sempre conduzida pelo mesmo motorista, sempre. E foi por esse detalhe, algo que passaria despercebido para qualquer outro, que ele notou a chegada do momento pelo qual tanto ansiava.


O carro saiu em disparada pela via de mão única, ganhando distância rapidamente. Mas o vigilante também era capaz de se locomover com eficiência. E, como um leão na aridez da savana, ele iniciou a perseguição à sua presa.


Por conta do horário e da noite vazia, o automóvel da mulher não encontrava qualquer obstáculo nas ruas. Os cavalos do motor podiam galopar em liberdade. Ela seguia alheia à presença do perseguidor que conseguia se mover com ainda mais desenvoltura. Logo, as cercanias do condomínio de luxo tornaram-se evidentes. Sem demora, os portões se abriram para a ilustre moradora, mas o homem que chegou instantes depois também teve o acesso liberado sem contestação. Para isso, bastou que olhasse para a lente da câmera de segurança. Por uma das telas, de dentro da guarita, o responsável pelo monitoramento sabia que não poderia negar-lhe a passagem.


O intruso sabia exatamente para onde seguir. Nas tentativas anteriores, todas infrutíferas, ele percorrera exatamente o mesmo caminho. Os passos treinados o levaram diretamente ao ponto de observação. De onde estava, ele conseguia uma ampla visão da exuberante cobertura de sua vítima.


Novamente, ele colocou a visão especial para compensar a pouca luminosidade. A atenção era total. Desta vez, ele teria êxito em sua investida. Nada poderia dar errado, a sorte conspirava a seu favor...


Ele permaneceu imóvel, como uma gárgula, por cerca de quinze minutos, o que lhe pareceu uma eternidade, tamanha era a ansiedade. Mas finalmente a espera começava a valer a pena. Num dos quartos, o que oferecia visão panorâmica para o mar, ele percebeu uma movimentação incomum. O encontro entre as cortinas deixava transparecer uma leve mostra do aposento. A fresta levianamente esquecida, acabaria por revelar-se como um erro imperdoável.


Ele enxergava, em relances, o caminhar da mulher pelo quarto. Logo, aconteceu o que esperava: um estranho a abraçava, a rainha perdia o trono. Desta vez, o paparazzo gargalhava abertamente. Finalmente a atriz que declamava aos quatro ventos o quanto prezava pela própria privacidade, teria sua intimidade exposta para o mundo.


Fazendo uso de uma câmera fotográfica de longo alcance, ele não encontrava qualquer dificuldade para registrar com nitidez as imagens proibidas, mesmo sob o manto da noite. Ele conhecia o motorista da mulher, sabia tudo da vida daquele senhor de barba e cabelos grisalhos. Assim, obviamente, não foi difícil compreender que havia algo de errado quando notou a presença daquele rapaz estranho por trás do volante na entrada do restaurante, ao invés do rosto conhecido do velho. Sua intuição nunca lhe decepcionara antes.


Em suas atividades, o retorno financeiro compensava, e muito. Mas para ele não se tratava apenas de dinheiro, se assim fosse, ele poderia se comparar aos inúmeros que corrompia com facilidade, como o funcionário da segurança, para facilitar as investidas supostamente indevidas. Não. Para ele não era algo tão superficial. A maioria não conseguia enxergar a grandeza de seus atos. Ele tinha o dom de equilibrar a balança, de igualar níveis, aniquilar patamares. Era possível provar que ninguém estava livre dos anseios mundanos. Cada um tinha o direito de fazer o que bem quisesse, mas ostentar uma falsa realidade era demais para ele. Sua missão era expor a verdade, e para isso não importava os meios. A objetiva trabalhava incessantemente, a vitória era dele, a inalcançável mulher teria sua intimidade exposta na capa de uma revista, o maior flagra dos últimos meses, o ápice da glória...


O fotógrafo recolheu seu equipamento, descendo rapidamente as escadas do prédio da conservação do condomínio. Ele enviava as imagens para o editor, enquanto caminhava apressadamente rente a cerca viva, não havia tempo a perder. Logo chegou à via de serviço, a mesma pela qual entrara, fazendo um leve aceno de cabeça para o ocupante da guarita, ganhou as ruas.


A motocicleta, estrategicamente deixada num dos acessos secundários, rompeu pela madrugada. Há quanto tempo ele não experimentava o prazer incomparável do sucesso, como sentira falta daquela sensação. Livre do capacete, ele absorvia o afago do vento no rosto. Sua mente vagava rumo à realização plena, a qual, em breve, estaria espalhada em cada esquina, em cada banca de jornal, em todos os lugares.


Um zumbido familiar no bolso da jaqueta o fez sair dos devaneios. Com a mão direita, e sem encostar o veículo, ele alcançou o telefone celular...


- Como assim só aparece ela nas fotografias? Você está maluco?


Um impacto o fez deixar cair o aparelho no chão. De maneira absurda, alguém acabava de ocupar a garupa de sua motocicleta em pleno movimento. Ele perderia o equilíbrio, se estivesse no controle do veículo, o que já não ocorria mais. O fotógrafo tentou se virar, mas a pressão em suas costelas o impedia. Ele buscou com os olhos o espelho retrovisor, mas não havia reflexo algum.


Uma voz arrastada tocou-lhe os ouvidos...o hálito gelado o fez sentir mais dor do que as pontadas no abdômen.


- Você não pode capturar todas as imagens...pois algumas criaturas simplesmente não as têm...a privacidade de alguém é algo sagrado, especialmente a minha... Na manhã seguinte, ao invés da glória, o que estampava os jornais era o sangue do paparazzo. A garganta dilacerada passou despercebida, coisas assim acontecem em acidentes com motocicletas, principalmente quando não se faz uso dos itens de segurança.


Esparramado no chão, ele jamais poderia compartilhar qual era a sensação de estar do outro lado das lentes...

Nenhum comentário:

Postar um comentário