sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A MULHER PERFEITA

O céu escuro e desprovido de lua ou estrelas contrastava com a temperatura abafada que estranhamente abraçava aquela parte da cidade. Ainda assim, a noite foi recebida com grande satisfação, o que não poderia ser diferente, afinal, ela aguardara a data com incontida ansiedade.

O calor desproporcional fazia com que ela buscasse um pouco de alívio na água gelada do chuveiro, o líquido deslizava por seu corpo como uma serpente apressada nas areias escaldantes de um deserto. Não havia harmonia no contato, a brasa em sua pele repelia qualquer possibilidade de comunhão, pois até mesmo o ar parecia demasiadamente pesado.

Ela tentava livrar os pensamentos de qualquer tipo de distração, só poderia haver espaço para uma única palavra em sua mente: perfeição. Nem o céu fechado, tampouco o calor infernal, nada poderia atrapalhar o que planejara para aquela noite.

Não havia razão para toalhas. Ela saiu do box deixando um rastro úmido pelo caminho. De frente para o espelho, não foi difícil identificar um discreto sorriso de satisfação com o que via, era impossível resistir à sua vontade.

Usaria apenas um vestido de tecido negro para cobrir o corpo, não seria preciso mais nada. Os cabelos ainda molhados escorriam de forma desgrenhada por sobre os ombros, ela fazia questão de causar impacto, era sua intenção gerar opiniões e emoções.

Antes de sair, ainda fez um afago num coelho que saltava de um lado para o outro no interior de uma gaiola. O bicho parecia extremamente incomodado, provavelmente pelo sopro infernal da temperatura da qual ninguém conseguia escapar.

Em poucos minutos, após uma rápida e proveitosa caminhada, ela entrava no restaurante, onde um rapaz a aguardava numa mesa previamente reservada. Ele parecia radiante em vê-la, mas certamente não apresentava a mesma ansiedade que ela própria ostentava, pois aquela situação não fora criada de modo aleatório ou desleixado. Cada detalhe daquele encontro fora meticulosamente calculado, desde a data e o local, até a parte principal, a escolha daquele que puxava uma cadeira para que ela tomasse assento...

A atenção do rapaz se dividia entre os contornos da face fria da mulher, e a habilidade natural com a qual ela fatiava a carne de consistência quase crua depositada sobre a porcelana. O movimento dos seus lábios era suave, e estes ostentavam uma tonalidade rubra por obra do próprio alimento, pois ela não fazia uso de qualquer tipo de cosmético. Embora ela mantivesse uma cadência ritmada nas ações que executava, havia algo em seus olhos que insinuava exatamente o oposto. Era como se ela quisesse atacar a refeição com o ímpeto de uma fera enlouquecida.

Durante o encontro, o rapaz se absteve de acompanhá-la no jantar. Talvez ele estivesse entorpecido, ou intimidado, pela presença de sua convidada. Assim, apenas alguns goles de água sem gelo foram sorvidos por ele ao longo do par de horas em que permaneceram no restaurante.

Já ao ar livre, por conta dos argumentos da mulher, decidiram caminhar. A lua continuava a se esconder por trás de uma cortina de nuvens escuras. Ao enlaçarem as mãos, o rapaz achou a contato extremamente gelado, algo que contrastava com a temperatura sufocante que insistia em dominar aquela região.

Três quarteirões bastaram para que chegassem ao destino desejado: o apartamento dela. De maneira estranha e contraditória às últimas horas, a mulher permanecia calada, na verdade, ela deixava escapar sinais de nervosismo. Eles cruzaram rapidamente a recepção do prédio e, novamente a pedido dela, decidiram vencer os sete andares fazendo uso das escadas, em detrimento ao elevador. Ela dizia que o exercício faria bem para a respiração e, principalmente, para a circulação sanguínea...

Ao cruzarem a porta, a luminosidade branda, obra da iluminação indireta, chamava a atenção. A anfitriã demonstrava muita agitação, era indefinível a razão, afinal não haveria qualquer novidade no que estava prestes a fazer. Por fim, ela julgou que a ansiedade começava a extrapolar os limites do tolerável e, após inspirar profundamente o ar, pediu para que o convidado a aguardasse por um momento na sala. Uma garrafa de vinho branco e duas taças foram depositadas numa pequena mesa, ao lado do sofá. Com um sorriso maquiado, ela deixou o recinto sob o olhar intrigado do rapaz.

Seus passos decididos a levaram à cozinha. A mulher procurava por algo, e o que ela buscava percebeu isso. Como se adivinhasse as intenções por trás daquela aflição, o coelho tentou se esconder nos fundos da gaiola, mas não havia como escapar, logo sentiu os dedos gelados sobre seu corpo.

Ela experimentou a agradável sensação fornecida pela palpitação acelerada do pequeno coração. Era assim que gostava. O sangue fluindo veloz pelo corpo dos escolhidos. A mesma lâmina de sempre repousava sobre a fria bancada de mármore. O ventre do animal se oferecia de bom grado. Com um movimento preciso, a mão firme deslizou o objeto pela superfície da carne tenra. Logo, o líquido que brotava manchou de escarlate a maciez alva dos pêlos lisos.

Dedos ávidos abriram caminho pela fenda exposta. Os órgãos internos do animal eram arrancados com furor, para, em seguida, serem levados a percorrer o caminho definitivo entre a boca e o estômago da mulher. O sangue vivo escorria pelos cantos da boca, queixo e pescoço. A língua, em movimentos desesperados, tentava capturar qualquer resquício do néctar precioso. Nada sobrou para ser ingerido...

De frente para o espelho, com o qual se encarava todas as manhãs, ela exigia perfeição de si mesma. Com as mãos em concha, captou a água gelada da torneira e a lançou de encontro ao rosto. Antes de retornar para a sala, a mulher sorriu e disse em voz alta: “Agora sim, bem melhor”.

Refeita, e um pouco menos afoita, a mulher partiu ao encontro do convidado. O vestido negro ficara pelo caminho, parte dos subterfúgios que costumava empregar. Ela trazia uma pequena bolsa nas mãos, onde, além de outras coisas, uma surpresa se escondia, algo que o bicho, cuja carcaça jazia na lixeira da cozinha, conhecera muito bem.

O rapaz se levantou de imediato ao vê-la. Ele ensaiou levar as taças de vinho, mas a mulher, com o indicador em riste, sinalizou que não. Ela o empurrou até uma coluna localizada no centro da sala. Rapidamente, uma venda cobriu sua visão. Com extrema desenvoltura, ela atrelou um par de algemas nos pulsos e tornozelos do boquiaberto convidado. As argolas foram fixadas em ganchos incrustados na armação de concreto.

Com o domínio da situação, a mulher alcançou o cabo da adaga. Suavemente, ela deslizou o fio da lâmina pela própria língua, o gosto do sangue inundou sua boca, aflorando ainda mais os já inflamados instintos. Antes de investir de forma definitiva em suas intenções, ela tomou o cuidado de retirar da bolsa um último utensílio: uma providencial mordaça.

A ponta da faca tocou delicadamente o prisioneiro na altura do umbigo. A lâmina foi movimentada para cima, arrancando os botões da camisa conforme subia. O objeto afiado parou, por alguns instantes, na altura do pomo-de-adão, onde, por obra de um curto giro, fez brotar um ponto vermelho. O rapaz não esboçava reação alguma, o que não deixou de intrigar a mulher.

Ainda assim, ela continuou com as ações. Aproximando-se o máximo que pôde, ela posicionou a mão desarmada no pescoço do convidado, enquanto a outra descia pela coluna de concreto. De modo ardiloso, a lâmina foi colocada numa posição estratégica, até que, lentamente, foi forçada a abrir passagem pela carne do rapaz, até encontrar o destino imaginado, o baço da vítima.

Um círculo rubro crescia no tecido da camisa, à medida que o cabo da adaga era torcido. Um sorriso doentio brotava no rosto da mulher, mas ela não conseguia enxergar a esperada, e usual, reação em seu convidado. A dor deveria ser gigantesca, mas ele nem ao menos se mexia.

Então, ela puxou a lâmina de uma só vez, o sangue espirrou em profusão do local antes ocupado pelo metal. Sem perder tempo, a mulher tratou de descrever novos riscos na carne do algemado. Com precisão, ela arrancou um pedaço de pele da região do peito, abocanhando-o no mesmo instante. Ela já não conseguia se conter, estava entregue a um frenesi sem precedentes, talvez só semelhante ao encontrado nos tubarões quando estes farejam uma presa.

Ela golpeava repetidas vezes o corpo imóvel do rapaz, enquanto mordia-o e arrancava nacos sangrentos com os dentes. Já não era possível afirmar com certeza se o prisioneiro ainda vivia. Mas ela não se preocupava muito com isso, pois, de qualquer forma, o prato principal seria servido em seguida. Um mar de saliva inundava sua boca ao imaginar a carne suculenta do coração fresco descendo por sua garganta. Empregando muita força, a jovem empurrou a adaga ao encontro do músculo desejoso, o aço deslizou suave por um breve instante, até se chocar com algo rígido, um ponto impenetrável...

Naquela altura, o calor era tão intenso que a temperatura parecia não obedecer à vontade do aparelho de ar condicionado. A mulher parou para respirar. O suor se mesclava ao vermelho roubado em seu corpo. Mais uma vez a perfeição lhe sorria, o trabalho bem feito não deixava dúvidas quanto a isso.

Sem se preocupar com o rastro de sangue que deixava ao caminhar, ela se aproximou da janela e empurrou a estrutura de alumínio e vidro. A noite continuava escura e sem lua. Por um instante, ela imaginou o que passaria na cabeça de um voyeur oportunista, caso estivesse na mira de algum. Certamente, não seria muito agradável para ele. Um sorriso espontâneo surgiu com o pensamento. No entanto, tanto a fisionomia, quanto a janela, imediatamente se fecharam com a percepção de um estrondo vindo da sala.

A mulher correu. Um grito de horror escapou de sua garganta, o que era algo novo para ela, a julgar pelas cenas que estava tão acostumada a ver e proporcionar. Mas aquilo que estava diante dos seus olhos era algo absolutamente inédito, aliás, inimaginável.

Não havia explicação para aquela cena. Seu convidado, ou melhor, o que sobrara dele, estava esparramado no chão, livre das amarras. Mas seu corpo não estava mais do jeito que ela havia deixado. Era como se só houvesse a pele vazia, sem qualquer consistência, sem ossos ou vísceras, como uma embalagem descartada. Um enorme buraco se mostrava no centro do peito, onde antes se encontrava a adaga, a qual, naquele momento, estava jogada aos pés da pilastra.

Não havia mais luz indireta, na verdade, não havia mais luz alguma. O apartamento estava entregue às trevas. O ambiente ardia, o ar queimava nos pulmões. Pela primeira vez em sua vida, a mulher sentiu medo. Ela não estava mais no controle da situação, não havia mais perfeição em seus atos.

Suas mãos buscaram a adaga no chão. Era como se alguma coisa a dissesse que aquele instrumento, tão acostumado a ceifar vidas, poderia, naquela ocasião, significar a manutenção de sua existência.

O silêncio imperava. Seus ouvidos tentavam captar qualquer ruído, mas tudo o que conseguiam ouvir era o som de sua própria respiração. O objetivo para aquela noite havia mudado, agora, tudo o que ela mais queria era chegar até a porta de saída. Mas ela não poderia ser afoita. Geralmente os caminhos mais óbvios acabam se revelando como os mais tortuosos, quando a impaciência domine os atos. Não, ela não poderia perder a calma.

Quando já começava a achar que seria dominada pela loucura, um novo estrondo foi ouvido, o primeiro de uma nova onda. Era como se todo o espaço estivesse sendo revirado. Móveis, prateleiras, utensílios, aparelhos, tudo era derrubado, ao passo que uma espécie de farfalhar ecoava por todas as direções. Ela já não conseguia se conter, não havia mais razão para isso. Um grito revestido pelo mais absoluto desespero rasgou o ar...

A mulher correu sem qualquer precaução, a urgência a dominava. Ela tropeçava e esbarrava nos mais diversos obstáculos, mas a certeza de que conseguiria alcançar a maçaneta brotava em seu peito conforme as passadas se tornavam mais eficientes. Visualizando o espaço onde estaria a salvação, ela saltou, no intuito de encurtar a distância. Porém, seu vôo foi interrompido por um abraço apertado, demasiadamente apertado.

Ela nada enxergava, além de dois minúsculos pontos luminosos, um olhar perturbador a encará-la. Aquilo diante dela exalava um hálito nauseante e insuportavelmente quente, era como se toda a onda de calor dali se originasse. Era impossível mover qualquer músculo, por mais que tentasse. Um som impressionante chicoteava seus tímpanos, algo como o zumbido de milhões de besouros. Ela sabia que estava entregue à vontade daquilo que a segurava com tamanha convicção. Era como se levitassem no ar, pois seus pés não mais tocavam o chão.

Ela sentiu um toque úmido no pescoço, a sensação percorreu toda a extensão da pele até sua orelha direita, uma dormência tomou conta da área atingida pelo contato da língua do algoz. Não havia dor no início, apenas repulsa, porém isso logo mudou com a percepção de um estalido seco. Uma pressão rompeu o caminho através do canal auditivo. A mulher se debatia incontrolavelmente, enquanto era devorada de dentro para fora.

Ela tentava gritar, mas não possuía mais força, tampouco voz para isso. Antes de desfalecer, ainda conseguiu ouvir as batidas insistentes na porta. Eram policiais, haviam sido alertados pelos vizinhos, por conta da movimentação incomum.

Com um estrondo, a porta foi ao chão. Fachos de luz irromperam pelas trevas. Os homens da lei perceberam o corpo de uma mulher no chão, e os contornos do que seria um invasor. Tiros foram disparados, mas o estranho não parou, pelo contrário, partiu em disparada.

Dois policiais seguiram em seu encalço pelo corredor, mas, para sua total incredulidade, o desconhecido se jogou de encontro às vidraças da janela, um mergulho para a morte certa, a julgar pela distância de sete andares até o chão.

Os homens olharam pelo vão, mas nada viram. Aparentemente, não havia ninguém espatifado no asfalto, por mais incrível que pudesse parecer. Talvez, estivessem procurando no lado errado...

O céu começava a limpar. Um quarto crescente se mostrava grandioso, cercado por algumas estrelas. No alto de um parapeito, uma figura de pedra permanecia agachada, imóvel como todas as estátuas costumam ficar. Seus longos braços abraçavam os joelhos, as asas unidas às costas resguardavam um vôo improvável. Da boca escancarada, pendia uma longa e bifurcada língua, da qual ainda escorria um ínfimo filete de sangue.

Em sua busca incansável pelo alimento ideal, a mulher se deparara com a mais completa e imprevisível das criaturas. Esta permaneceria ali, incansável, em sua morada de pedra, à espera, até a chegada de outra noite sem lua. Assim surgiria uma nova possibilidade, um novo caminhar entre os viventes. Se tivesse sorte, talvez encontrasse outra mulher perfeita...

3 comentários:

  1. Bravo, meu amigo! Apesar de, em certa altura do texto, consegurimos delinear a sorte que assaltará a mulher perfeita, o texto corre célere e flui admirável, nos prendendo a cada detalhe irrepreensível! Bravo, piá! Bravo!

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  2. E eu sentindo pena do coelho e achando que a mulher estava de dona da situação. rs

    "A mulher se debatia incontrolavelmente, enquanto era devorada de dentro para fora."

    Um conto realmente fantástico. Parabéns!!


    *estou em endereço novo, agora Contos da Rosa está no blogspot*

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