sexta-feira, 30 de julho de 2010

A PESCARIA


Uma gigantesca lua cheia iluminava plenamente a superfície do lago. Um cenário acolhedor e calmo, se a placidez do espelho d’água não tivesse sido quebrada pelo ímpeto incontido, característica tão peculiar e presente em qualquer ato adolescente.

O rapaz ignorava por completo as circunstâncias pouco convidativas fornecidas pela noite de inverno. Apesar dos seus chamados e apelos, a namorada se recusava a lhe acompanhar no mergulho gelado, preferia ficar junto à margem, protegida pelo calor reconfortante de uma fogueira.

- Venha, não seja boba. A água está ótima. – Bradava o garoto, do meio do lago.

- Não. Prefiro ficar aqui. Você deveria fazer o mesmo, ao invés de ficar se debatendo nesse gelo e me deixar sozinha nessa barraca. - Respondia a menina, também em alta voz.

- Você é muito fresca, Márcia. A água não está tão fria e...

- E o que, Rafael? – A pergunta da jovem deixou transparecer um tom muito mais de preocupação do que de curiosidade.

- Não sei... Tive a impressão de que algo resvalou em minhas pernas...

- Então saia já daí. Não dá para confiar nessas águas escuras. É impossível adivinhar o que nelas se esconde.

- Não. Deve ter sido só impressão e...

Antes que pudesse completar a frase, Rafael simplesmente desapareceu do campo de visão da namorada, para seu completo desespero.

- Rafael? Rafael? Pare com isso! Você está me assustando!

Nenhuma resposta surgiu das águas. Márcia corria de um lado para o outro, em busca de qualquer contato visual que pudesse aplacar o aperto em seu peito.

Bolhas surgiram numa área já bem próxima da margem onde a jovem estava, aumentando sua expectativa. Jatos dágua lançados ao ar antecederam o surgimento do rapaz. Seu olhar estarrecido mesclava dor e desespero, não teve outra atitude a não ser gritar:

- Fuja, Márcia! Fuja daqui!

Alheia aos apelos, a garota adentrou nas águas e mergulhou de encontro ao rapaz. Decidida, ela agarrou seus braços, exercendo muita força para tentar tirá-lo do lago. Entretanto, a resistência encontrada conspirava contra suas pretensões. O choro e os gritos do namorado completavam os elementos do seu próprio pânico.

Ela puxava, conseguia com muito custo levá-lo para a terra firme. A água mal tocava seus joelhos quando recebeu o duro golpe da realidade: o seu, agora inconsciente namorado, já não existia da cintura para baixo. O susto a fez levar as mãos a cabeça e gritar. A parte superior do corpo foi, então, tragada para as profundezas. O impacto a derrubou. Totalmente desnorteada, ela, ainda assim, tentava se arrastar pelo terreno lodoso, na ânsia de escapar seja lá do que fosse.

Mas suas dúvidas acerca da natureza do estranho fenômeno não tardaram a desaparecer. O choque das águas em suas costas, acompanhado por uma espécie de grunhido indefinível, a fez entender que aquilo que havia levado Rafael não só era muito pior do que ela poderia supor, como retornava com claras intenções de proporcionar o mesmo fim a ela própria.

Olhando por sobre o ombro, ela não foi capaz de entender a natureza da criatura que seus olhos insistiam em lhe mostrar como real. O cheiro marcante, de algo envelhecido, dominava o ar, queimando-lhe as narinas. Mas a marca de podridão não era a maior de suas preocupações. Os inúmeros e afiados filamentos, que enfeitavam a enorme boca do ser, respondiam pelas incertezas de sua perturbada mente.

A gosma que escorria daquele maldito vão de perdição era composto pela saliva da criatura e, também, pelo sangue do seu namorado. Ela não conseguia distinguir tal convicção com a sensibilidade de sua visão, mas seu coração lhe afirmava essa certeza com todas as letras. Aquilo não só matara Rafael, como se este fosse um invasor em seus domínios, como, também, fizera questão de devorar, com mórbido prazer, cada parte do frágil corpo do rapaz. O semblante perverso da criatura não deixava dúvidas quanto a isso.

Márcia sentiu a terra seca sob a palma das mãos. Então, tentou flexionar os joelhos em busca de fuga, mas sua tentativa traduziu-se em frustração e dor. Muita dor. Uma rápida e furtiva investida por parte da criatura, resultou na captura de sua perna direita.

Os afiados filamentos, os quais faziam as vezes de dentes na monstruosa boca do ser, cravaram-se com violência na maciez da carne. A dor era indescritível. Quem escutasse seus gritos certamente teria plena consciência disso, pois sua voz ecoava, com lamento, em todas as direções. A noite não mais resguardava seu silêncio...

Ela não tinha muitas escolhas. Só lhe restava puxar a perna com firmeza, mesmo que essa atitude significasse maiores danos, como de fato ocorreu. Ao tentar se livrar do jugo da criatura, Márcia sentiu sua panturrilha ser rasgada, e um pedaço de si ficar entre os dentes da besta.

Mesmo com a sensação de que mil ferrões em brasa lhe consumiam, ela conseguiu se erguer e iniciar uma tentativa de fuga já em terra firme. Apesar de não querer, seu instinto a fez olhar para trás, seu coração acelerou mais ainda. O demônio também havia erguido seu corpo das águas, revelando, assim, toda sua monstruosidade. O maior temor da garota se confirmou em seguida, pois a criatura não desistira de capturá-la, mesmo estando ela distante dos seus domínios.

Márcia tentava correr da melhor maneira possível. Ela se lembrava de ter visto uma cabana na outra margem do lago. Talvez conseguisse ajuda, era sua única chance.

Conforme ela abria caminho pela mata, seu corpo deixava um rastro vivo e facilmente perceptível pelo apetite da fera. Mas ela não poderia desistir, não poderia se deixar levar pelas adversidades. Precisava lutar pela vida com todas as forças que ainda lhe restavam.

Com muito custo, ela chegou numa clareira. Uma luminosidade tênue sugeria que havia alguém na cabana. Entretanto, o ruído incessante às suas costas indicava que seu perseguidor estava mais perto.

Ela ganhou os domínios da pequena residência. Gritava a plenos pulmões para chamar a atenção de alguém. Suplicava por ajuda. Um senhor de idade avançada, que até então estava postado próximo a um modesto píer, correu em seu auxílio. Nos braços do homem estava uma espécie de arpão.

A garota já estava no centro da clareira quando a fera surgiu. O velho se colocou entre elas e disparou, seu hesitar, sua arma de ar comprimido. A seta metálica rompeu a distância com velocidade, instalando-se na cabeça da criatura, a qual, vencida, foi ao chão.

- Afaste-se dele, menina. Mesmo abatido, ele ainda pode guardar algumas surpresas.

Cautelosamente, o velho se aproximou da fera, a qual, aparentemente, não emitia qualquer sinal de vida. Com a ponta do lançador, ele tocou suavemente sua pele escamosa e brilhante. Como resposta ao toque, inúmeros ferrões foram projetados por toda a extensão do corpo do ser.

- Percebe, menina? Estes espetos são extremamente venenosos. Ele pode abater uma pessoa mesmo depois de morto.

- E ele, ele está morto, senhor?

- Sim. Está sim.

- Obrigada. Não tenho como lhe agradecer. O senhor salvou a minha vida.

- Ora, isso não é necessário. Só gostaria de entender o motivo que o fez abandonar as águas. Eles nunca saem do lá, só caçam em seus domínios.

- Eles?

- Sim, minha filha. Existem muitos deles nas águas desse lago. É muito difícil abatê-los, muito difícil mesmo. Como foi que você o encontrou?

A menina então relatou todo seu drama, enquanto caminhava rumo à cabana, sendo amparada pelos braços do seu salvador. No interior da residência, uma senhora, a esposa do pescador, preparava um chá para acalmar a aflição da jovem.

- Márcia – disse o anfitrião – deixe-me examinar esse ferimento. Venha, coloque sua perna sobre a mesa.

A jovem atendeu prontamente. Ela já não suportava a ardência na perna mutilada, mas, ao mesmo tempo, agradecia pelo fato de os filamentos bucais da criatura não ostentarem veneno, como seus ferrões.

- Maria – gritou mais uma vez o robusto pescador – venha até aqui. Você precisa ver isto.

Márcia se espantou com a frase proferida pelo velho. Haveria algo de errado com ela?

- Veja – disse o homem enquanto segurava a perna da menina. Ele a mordeu aqui.

O ferimento deixava exposta parte do osso. Um pedaço considerável da panturrilha havia sido arrancado.

- Foi o gosto pelo sangue dela que o fez sair das águas. Percebe, Maria? – Afirmou o velho, recebendo um simples aceno de cabeça por parte da esposa como resposta.

- Vá lá dentro e traga algo para que possamos dar um jeito nisso. A menina está sofrendo com a dor, isso não pode ficar assim.

A velha deixou a sala para, em instantes, retornar com o utensílio solicitado. Sem que Márcia pudesse esboçar qualquer reação, Maria ergueu o machado e desceu a lâmina com violência, decepando a perna esticada da menina, enquanto o marido segurava-lhe o pé.

Gargalhando, o velho disse para a esposa, enquanto a menina gritava em desespero:

- Maria! Que sorte a nossa! Encontramos uma isca melhor do que qualquer outra que poderíamos imaginar. Aquele lá fora, depois de limpo e livre das bolsas nocivas, deve suprir nossa despensa por uma semana, pelo menos. Mas, com essa carne aqui – exibia a perna ensangüentada – poderemos pescar muitos outros.

A velha sorria, enquanto preparava um novo golpe...

2 comentários:

  1. Flávio, isso que eu chamo de final supreendente, nosssaaa, já estava arrepiada com essa coisa na água e agora, com este desfecho. Este conto é insano, deliciosamente insano.

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  2. p.s. nunca mais quero nem pensar em pescaria :P

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