segunda-feira, 5 de julho de 2010

ASAS DA MORTE


Os grãos dourados voavam pelo ar. Refletiam o brilho dos últimos raios de luz de uma tarde ensolarada. Logo, uma grande nuvem nublou a área sobre a praça, inúmeros indivíduos se aglomeravam e golpeavam o concreto liso do solo numa busca ávida por recompensa e alívio. Os bicos afiados disputavam sofregamente cada lasca das sementes atiradas a esmo.

Uma senhora, que trazia estampado no corpo o rigor do tempo, era o centro das atenções. Postada em um banco, no meio da praça, ela distribuía o alimento e incentivava o frenesi coletivo das aves. Seu sorriso franco, embora mutilado, acompanhava o êxtase percebido no olhar vítreo que direcionava à ação dos animais.

A velha nutria uma fascinação irrestrita pelos pombos. Achava incomparável a maneira com a qual eles se entregavam em sua diretriz básica: se alimentar. De fato, ela encontrava muitas semelhanças entre os seres emplumados e os extintos predadores jurássicos. Para ela, ambos compartilhavam da mesma ferocidade perante o alimento. Por vezes, seus olhos acompanharam, estarrecidos, vários espécimes sendo esmagados pelas pesadas rodas dos veículos que cruzavam, em alta velocidade, a avenida nas cercanias da praça.

Realmente era algo aterrador. Mesmo diante da presença real da morte instantânea entre a borracha e o asfalto, o instinto de sobrevivência dos animais priorizava a fonte de energia em detrimento a integridade do próprio corpo. Eles resistiam ao máximo, relutavam até o último minuto, configuravam uma verdadeira batalha interna sobre o que fazer. Tal constatação era inegável, uma atitude genuinamente predatória.

De súbito, uma barulhenta revoada quebrou o encanto da ocasião. Imediatamente a expressão focada, porém distante, da enrugada mulher converteu-se num semblante carregado, pleno de ira e reprovação. Uma criança corria em direção aos pombos, espantando-os com sua aproximação. Vociferando contra a atitude do pequeno, a velha se levantou e agarrou, com violência, seu braço. O garoto gritou de dor. Em sua pele ficaram as marcas avermelhadas das unhas grossas e sujas da estranha.

A mãe do menino, que vinha logo atrás, não acreditou no que via. Indignada, ela partiu decidida a acertar as contas com aquela que agredira, de forma gratuita, seu filho. No entanto, os populares, que pela praça caminhavam, trataram de conter o ímpeto da mulher.

Sendo escorraçada pelos transeuntes, e sem qualquer outra opção, a velha lentamente deixou o lugar. Mas não sem resmungar e praguejar contra aqueles que ficaram.

Ainda naquela noite, a família responsável por tamanha afronta e ousadia receberia um castigo. Uma providencial e justa lição.

A manhã chegou, e com ela os gritos de uma desesperada mãe. A cama do filho estava vazia, não havia sinal do menino em lugar algum da casa. Na mente da mulher só vinha uma imagem: uma velha maldita com suas palavras ameaçadoras.

Na praça, os pombos se digladiavam com fúria pela nova iguaria oferecida pela histérica senhora. Envolvida pelo desespero das aves, ela não percebeu a aproximação da viatura policial, tampouco notou quando os agentes da lei a cercaram. A velha só despertou para a realidade quando uma mulher, a mesma do dia anterior, começou a gritar e a atirar pedras contra seus inestimáveis amigos.

Uma denúncia não se fez necessária. Não foi preciso nenhuma acusação. A idosa, de modo orgulhoso e desafiador, bradava a plenos pulmões o que havia feito, como se quisesse ofender e machucar aquela que insistia em maltratar seus protegidos. A jovem mãe, vencida pelo impacto das palavras, perdeu os sentidos, sendo amparada pelos policiais.

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Alguns meses depois, internada em uma instituição para portadores de distúrbios psicológicos, a condenada amargava a dor da infinita solidão. Enclausurada por muros altos e brancos, ela nutria em seu peito o desejo de rever, nem que fosse pela última vez antes de morrer, seus companheiros emplumados.

Sentada em um banco tão semelhante ao da quase esquecida praça, ela observava o por do sol quando percebeu uma sombra familiar. E a esta somaram-se outras, logo o chão estava tomado por um mar de aves. Os lábios ressequidos da mulher esboçaram um sorriso, amenizando um pouco o semblante esculpido por profundos sulcos.

Os pombos formaram um tapete de penas ao redor da velha senhora. Eles esperavam pelo usual prêmio, a recompensa por sua devoção. Mas ela não tinha milho ou qualquer outro grão para lhes oferecer. O instinto rudimentar dos animais associava a imagem da mulher ao alimento, e eles se lembravam muito bem do gosto da última refeição.

A primeira ave ensaiou um movimento rápido. Logo, outra a acompanhou. Em instantes, inúmeros e vorazes bicos retalhavam o corpo enrugado da mulher, a qual, de forma enlouquecida, gritava e gargalhava. Os bichos se alimentavam com a carne da antiga amiga, e esta, enfim, realizava sua última vontade: estar com eles antes do abraço definitivo da morte.

3 comentários:

  1. Assustador, insano e cruel! Sensacional!

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  2. Tenebroso! Lembrei do filme "O Perfume - história de um assassino". Atroz! Parabéns! **Flávio, mudei o layout do meu blog e criei outro pra colocar apenas contos. Este teu já está lá em meus favoritos. http://contosdarosa2.zip.net

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  3. Muito bem escrito, na verdade, angustiante e diferente,pássaros podem ser assustadores.

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