domingo, 6 de junho de 2010

SEDENTA


Natureza, força ativa que estabelece e mantém a sincronia da ordem natural no mundo. Lei maior a que todos estão submetidos. Ela determina sua magnitude através de exemplos visíveis de poder, como essa tempestade de proporções inimagináveis, fato incomum, sobretudo pela época do ano, embora a própria natureza ensine que não há regra fixa ou imutável no que tange as suas particularidades.


Um rapaz corre de maneira desabalada por entre as paredes altas do jardim vivo. Ele pouco liga para os açoites firmes que as pesadas gotas produzem em sua pele dilacerada. Instantes atrás, estava encarcerado em um cômodo com outras pessoas, mergulhado em um estado de semiconsciência. Durante esse período jurava ter ouvido algo a respeito de uma reserva de sangue, e isso o fazia entender que sua presença ali fazia parte de algo maior, um plano de pretensões perversas.


Não se lembrava de como havia se desvencilhado dos grilhões que o mantinham preso. No momento da fuga, as pessoas, que antes lhe faziam companhia, haviam desaparecido. Ele desejava que tivessem sido agraciadas pela mesma oportunidade que se apresentava a ele, embora achasse pouco provável. Os músculos do seu corpo já exibiam sinais claros de exaustão. Sentia que a vida lhe escapava, tal qual o líquido que vertia farto dos ferimentos abertos no tecido epitelial. Ele não poderia desistir. Não deveria se entregar. Precisava exigir o máximo que o corpo moldado por anos de exercício fosse capaz de produzir. Sua vida dependia disso, perseverar era preciso.


O ar teimava em não querer preencher seus pulmões. A tormenta nublava a sua visão, o sentimento de urgência conspirava para que as alternativas se ocultassem. Escapar daquela ilha parecia um sonho impossível de ser materializado.


Por alguns instantes, a escuridão do inferno fora quebrada por ação das descargas elétricas que riscavam o céu tomado pelas trevas. O espaço de tempo, embora mínimo, se mostrara capaz de desvendar-lhe o segredo maldito escondido entre as sombras imperscrutáveis. Diante da ameaça palpável, suas pernas foram revestidas por novas forças, energia viva e pronta a levá-lo através do único caminho que se apresentava disposto. As brasas rubras que se acenderam tão logo a estratégica posição fora descoberta, não permaneceram impassíveis, empreenderam-se numa busca necessária, um prêmio a ser conquistado. No local, uma enigmática figura permanecia imóvel, apenas acompanhava os movimentos acelerados das criaturas que saíam em perseguição. Envolto por um impermeável negro, exibia um sorriso dissimulado, era a certeza da missão cumprida.


Um vermelho intenso se exibia radiante na superfície macia daquelas flores. O roseiral funcionava como um limitador de espaço entre o jardim e a varanda, já na parte interna da residência. O salto sobre o obstáculo deixou marcas de seu corpo incrustadas nos afiados espinhos. Vestígios de coloração tão viva quanto as pétalas despedaçadas. O mármore manchado por seu corpo ferido não poderia servir-lhe de abrigo. Os demônios de pelagem negra não o deixariam em paz enquanto não se fartassem com carne humana, a sua carne. A lembrança do garoto sendo devorado vivo ainda era fresca em sua memória. As bestas hediondas não se contentavam apenas em matar, exibiam uma doentia necessidade de despedaçar a vida como se esta não representasse valor. As feras, máquinas negras e mortais, um pesadelo personificado, estavam ali, em seu encalço, cada vez mais perto, esperando pela oportunidade de subjugá-lo.


Uma rampa estendia-se pela lateral da construção, ligando o pátio ao terraço do casarão. O portão, com grades tubulares de aço, poderia deter os cães por algum tempo. Os animais inspiravam o ar com vontade, filtravam as diferentes essências que compunham o ambiente, não tinham pressa, apreciavam em cada instante aquele jogo de gato e rato. O odor produzido pela caça era peculiar, o medo deixava um rastro extremamente fácil de ser seguido.


O rapaz esgueirava-se pelo beiral da cobertura, de lá conseguiu enxergar quando os pontos luminosos começaram a faiscar contra as barras metálicas, uma densa fumaça esbranquiçada era expelida pela boca das bestas. A cena o fez estremecer. Retrocedeu através da ampla área aberta. O castigo imposto pela chuva continuava, as luzes que cintilavam ao longe, além mar, evidenciavam que uma fuga tornava-se cada vez mais improvável. Procurava alguma coisa que pudesse lhe valer como defesa contra as criaturas, enquanto caminhava para trás, sem perder o foco de visão na entrada da rampa, mas não havia mais tempo. Uma luminosidade macabra tomava conta do ambiente até então dominado pela escuridão absoluta, que tanto o prejudicou em sua busca.


Os olhos dos cães miravam diretamente em sua direção, as feras caminhavam com passos lentos, medindo cada ação, deliciando-se com o que estava por vir. O rapaz deixava escapar algumas lágrimas que se misturavam à água da chuva que o lavava por inteiro. Não havia mais esperança. Não escaparia com vida dali. Entretanto, do modo mais improvável que pudesse parecer, as criaturas hesitaram por um instante e começaram a recuar, baixando as aterradoras cabeças. De início ele achou que estivesse presenciando um milagre, em seguida questionou-se sobre o porquê de tal ato, e por último uma idéia perturbadora o assaltou de súbito.


As grades do portão, que haviam sido derrubadas por obra dos cães na ocasião da perseguição, estavam novamente no lugar, mas não havia nenhum sinal dos animais. Uma estranha luz começava a surgir às suas costas, então, pela primeira vez, pôde perceber a construção que se apresentava nos fundos da cobertura, era de lá que se originava a luminosidade. Mesmo contra todo o bom senso, ele se sentia atraído por uma imensa força que o direciona àquele círculo elevado de mármore reluzente. Conforme ele caminhava com passos vacilantes, o brilho crescia mais e mais, uma intensa guerra era travada em seu interior, mente e corpo não entravam em sintonia. Diante do círculo, percebeu tratar-se de um reservatório, preenchido até a borda por um caldo espesso. Instintivamente mergulhou a mão no líquido. A luz, que a essa altura já havia se elevado por toda a parede, lhe confirmava o fato que já era certo em seu coração, a cor não deixava dúvidas, porém o brilho amarelado revelava mais do que a natureza do líquido, deixava à mostra os troféus pendurados por enormes ganchos. Uma dúzia, talvez.


O pânico era evidente e inegável. Ele queria correr, gritar, chorar, mas as ações não correspondiam aos desejos. A visão dos corpos mutilados lhe transmitia a certeza de que seria mais um a enfileirar aquela galeria macabra. Parecia que nada poderia quebrar o encanto que fixara o seu olhar naqueles pobres infelizes, entretanto, o susto a que fora acometido se encarregara disso, e fora além, o fizera cair ao solo tamanha a perplexidade da cena.


A jovem emergira da banheira de sangue de maneira tão repentina quanto marcante. O líquido escarlate escorria pela superfície do seu corpo nu. Ela executou um salto incomum, pousando suavemente sobre a borda do círculo. Trazia na mão esquerda um artefato, uma imponente espada, composta por três lâminas reluzentes, era dela que provinha a luminosidade que acendia a madrugada.


A água derramada pelos céus tratava de lavar o corpo da garota, deixando expostos o tom dourado de seus cabelos e a palidez de sua pele. Seu rosto simétrico não se contentava em exibir uma beleza fria, fazia questão de intimidar por conta do olhar aceso em brasa, o sorriso moldado nos lábios mortos era cínico e ostentava superioridade.


Desta vez ele não tentaria escapar. Estava entorpecido pela presença da estranha. Um novo e suave salto a colocou no mesmo patamar do rapaz, e na cabeça deste fora inevitável o pensamento sobre a fuga dos cães. Somente um predador os repeliria daquela maneira, com tamanha facilidade. Naquele instante ele se lamentou por não ter sido abatido pelas feras, pois os olhos da garota o diziam claramente que ela era muito, muito pior.


Talvez, apesar de tudo, a sorte estivesse ao seu lado no fim das contas, pois um golpe único e preciso decepara sua cabeça, poupando-o de maiores sofrimentos. Erguendo o corpo abatido, a jovem bebeu diretamente do vão aberto onde antes se encontrava o pescoço do rapaz. Por aquela noite, a sede da Rainha estaria saciada.


A mesma força responsável pelo equilíbrio e pelos mais impressionantes fenômenos naturais, também se encarregara por fazer brotar, entre os viventes, criaturas com um propósito tão específico. Ferozes e calculistas. Sedutoras e frias. Capazes de tudo para alcançar o objetivo que anseiam. Pois assim se colocam, ainda que discretamente, no topo da cadeia alimentar, assim é a vida, desta forma é a natureza.

3 comentários:

  1. Um conto frenético, uma fuga alucinada sem escape numa mistura de sensações. Quero continuação.

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  2. Eles têm a marca da natureza realmente, mas em toda a sua fúria, um grande abraço, meu amigo.

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