quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

CAÇADA NOTURNA


Ele apontava a arma para baixo, estava trêmulo, um filete de suor gelado escorria pelo seu rosto, a temperatura das mãos não estava diferente. Tentava controlar a respiração ofegante, mas não conseguia, não deveria estar armado, mas o fato de estar, o deixava um pouco mais confortável, apesar do nervosismo. Ele não imaginava que seria assim, sua iniciação, precisava assegurar seu lugar dentro da família, mas tudo estava demorando demais, e ele não entendia a razão, precisava enfrentar o maior dos desafios, entrar nos domínios do caçador daquela floresta e trazer um dos seus para casa, provar para sua família que era merecedor do lugar a ele destinado.

Estava no alto de uma árvore, de lá pouca coisa enxergava. No céu, nem a lua aparecia para quebrar a escuridão. Sentia que havia sido localizado, seus inimigos se aproximavam, eram os batedores que o farejavam, não poderia desperdiçar sua munição com eles, seu alvo ainda estava oculto. Saltou da árvore e correu, os animais vinham atrás dele, com os dentes à mostra, prontos para dilacerá-lo, eles eram mais rápidos, o alcançariam logo, por que sua passagem demorava? Não conseguia entender...

Chegou até um descampado, o qual precedia um rio, fim da linha para ele. Os animais surgiram logo a seguir, atrás deles vinham os outros, foi quando aconteceu. Ele não sabia se fora por causa do horário ou do posicionamento no céu, mas havia começado, não precisaria mais de sua arma, era uma dor horrenda, indescritível, seus ossos começaram a estalar, sentia o corpo queimar, os olhos ardiam em brasa, os membros se contorceram de uma forma inexplicável e sua mandíbula se projetou, fileiras de dentes imensos e afiados surgiram, garras retorcidas apareceram em seus dedos, rasgando a pele e vertendo sangue, posicionou-se como um quadrúpede, pêlos espessos e negros lhe cobriram o corpo, a mutação estava concluída, um uivo infernal ecoou pela mata.

Os cães, que até então o perseguiam, hesitaram ao notar a besta diante deles, mas, ainda assim, ao comando do caçador, saltaram sobre ele. O primeiro foi rasgado ao meio pelas garras que cruzaram o ar, o segundo estraçalhado pela gigantesca mandíbula. A fera hedionda focalizava com seus olhos amarelados o alvo, ele não queria os outros caçadores, desejava o líder, aquele por quem buscava, o passaporte perfeito para sua iniciação, pouco ligava para os disparos desferidos contra ele, em seu caminho não se importaria com quantos teria de mutilar e matar, seu prêmio estava ali, seria recebido com honras.

O caçador municiava sua arma, parecia frio diante da cena que se apresentava, num movimento incomum, a fera saltou sobre ele, seus olhos notaram todos os detalhes daquele gigante de pêlos, garras e dentes, que voava em sua direção, caíram no rio.

No dia seguinte...

- Como eu estava dizendo – falava o caçador – até que esse deu trabalho, parecia bem jovem e inexperiente, mas era determinado.

- Pode ser – comentava um amigo de caçada – mas a carne dessa fera está deliciosa...

- É verdade, a cozinheira acertou em cheio no tempero, aproveitem – disse para todos à mesa, naquele almoço de sábado – a melhor comida é aquela que a gente trás com as próprias mãos.

Quem visitasse a residência do caçador encontraria uma sala refrigerada, e em seu interior, presos por ganchos de aço, várias carcaças, todas em estado de fera, ele não retirava as balas de prata com as quais as abatia, evitando assim que voltassem ao estado humano. Ele gostava de apreciar a carne da caça desse jeito, no estado de predadores da noite, ficava mais suculenta, assim falava.

Dava ânimo para conseguir mais troféus para sua sala de estar...

Deitado em sua cama, com a janela do quarto aberta, conseguia vislumbrar o céu claro de uma noite estranhamente limpa, e de lá, da parte alta da casa, conseguia enxergar a copa das árvores, um tapete verdejante que se estendia até o pequeno vilarejo, a floresta era bem fechada naquela área. Era de lá que vinham as feras que caçava, ele sabia que se organizavam durante o dia, e partiam em caça nas noites de lua cheia.

Mas, para o azar das bestas, ele e seus fiéis seguidores não permitiriam nunca que esse mal vingasse em sua região. Não, ele não permitiria que fizessem estragos em seu quintal, e em sua sala estavam expostas as provas de que era ele quem mandava ali, as cabeças pregadas na parede serviriam de aviso para qualquer adorador da lua.

Lua essa que se apresentava diferente naquela noite, seus contornos, estranhamente avermelhados, transmitiam uma sensação de mau agouro. Ele teve a impressão de ter ouvido algo, mas não haveria de ser nada, afinal, seus homens sempre montavam guarda todas as noites, e a garantia da prata estava em seus rifles.

Mas, de fato, aquela seria uma noite diferente, os gritos que se seguiram comprovaram o seu pressentimento. Som de disparos ecoavam pela propriedade, o caçador correu com a arma carregada e pronta em seus braços. Ao chegar no lado de fora, seu sangue gelou, até mesmo ele, homem experiente no assunto, ficou perplexo, vários corpos despedaçados, o chão de pedras manchado em vermelho, e o que um dia foram seus homens, não passavam, agora, de um monte de retalhos humanos, mas algo o intrigava, as feras não os devoraram, qual seria o motivo? E onde elas estariam? Por mais estranha que fosse a idéia, ele decidiu seguir para a mata, e ao olhar para trás, ainda conseguiu visualizar uma grupo de pessoas que se preparava para atear fogo em sua casa.

Já no meio da floresta percebeu a fumaça, um sinal indicador de que toda a história da sua família ardia em chamas. Decidiu que não fugiria, se fossem as feras, ou se fossem humanos, não importava, ele acabaria com todos.

Engatilhou a arma e se preparou para enfrentar o inimigo, sabendo que a essa altura poderia esperar qualquer coisa. Uivos foram ouvidos, os rosnados estavam próximos, segurou o cano do rifle com a mão esquerda, posicionou o dedo indicador no gatilho, fazendo mira na direção da clareira aberta, por onde viera. Sua respiração era entrecortada, fazia uma prece, se lembrou da fé nessa hora, o suor da tensão brotava em sua fronte, logo pontos amarelados começaram a surgir a sua frente. Não hesitou, começou a disparar, sua vida dependia disso, porém, antes que pudesse se dar conta, recebeu uma patada nas costas, tão violenta que o levou ao chão com imensos cortes onde recebera o golpe. O sangue jorrava farto, procurou a arma, mas uma pata peluda e com garras imensas interrompeu sua investida.

A fera estava de pé, e nessa posição, chegava fácil aos dois metros de altura, era horrenda e estava cercada por várias outras de sua espécie. O ser da noite agarrou o caçador pelo pescoço e o mordeu no ombro, apesar de não ter usado toda a força de sua mandíbula, o osso omoplata e a clavícula foram partidos facilmente. Não havia palavras para descrever a dor, fora jogado ao chão, e qual não foi sua surpresa ao presenciar a transformação da fera à sua frente. O som ouvido era parecido com o de ossos quebrando, os pêlos caíram e aos poucos a fisionomia se tornava mais parecida com a de uma pessoa, ao fim revelara-se por completa.

- Caçador, meu nome é Trystanna, sou líder deste clã, e saiba que aquele que você matou, luas atrás, seria o meu sucessor. E saiba, também, que a carne dos que matamos hoje não serve nem para nos alimentarmos. Você deve estar se perguntando o porquê de suas balas de prata não terem resultado no efeito usual hoje, e eu te respondo, veja – a mulher apontava para a lua no céu, extremamente vermelha – ela é chamada lua de sangue, e nessa lua, caçador, nós somos invencíveis, veja, hoje eu posso me converter como bem quiser, e temos domínio sobre as nossas ações, não ficamos escravos do instinto.

As outras feras permaneciam ao redor rosnando e uivando, ameaçando o homem caído.

- Não tenha medo, caçador, nós não vamos te matar, o seu castigo será outro, eu provei da sua carne, logo você será um de nós. Mas, sempre há uma alternativa – olhou para a arma caída – você ainda é humano, em você fará efeito.

A alcatéia correu livre pela noite, instantes depois, o som de um disparou ecoou pela mata.

3 comentários:

  1. Flávio, este merece uma continuação, caramba!

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  2. Seu conto está ótimo! Sempre gosto da temática dos lobisomens. Parabéns!!!

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  3. Muito bom Flávio! Muito bom mesmo! Parabens! Posso colocar esse na fila de publicações da Câmara?

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