sexta-feira, 14 de agosto de 2009

A VIOLINISTA SANGRENTA

No alto daquele rochedo, frente a um mar bravio, ela ouve a última sonata empreendida, quem sabe a mais sublime, a mais perfeita sonata, a última... Mascarada de uma dor nauseante que a impregnava de medo, de tristeza, de um remorso perturbador; pelo último suplício d’alma, agora, certa de estar perdida...
Horas antes, se lhe dissessem tal coisa, seria um mau agouro, ou interpretaria como uma falta de lucidez, talvez uma simples inveja de alguém que ansiasse pela mesma felicidade que ela possuía. Mas alheia a tudo, apenas, esmerava-se nos preparativos...
Nunca esteve mais feliz, nunca esteve mais completa, seus sonhos perdidos encontraram razão nos desejos de um jovem. O mais formoso homem que ela um dia pôde conhecer; ganhou seu coração muito rápido, afinal, por muitos anos ele viveu fechado. Era o homem que ela amava e que logo mais a iria desposar.
Foi o encanto do amado, seu carinho, seu cuidado, sua forma respeitosa, o seu olhar cúmplice que a arrebataram, que a tiraram do amargo de uma vida de ilusões para uma realidade preciosa e auspiciosa.
A mais talentosa violinista do Conservatório de Liens passou anos a fios embalando a todos com os mais preciosos concertos, todos eram alentados pela sua maestria, sua poesia cantada nas cordas daquele instrumento. Ela mesma sentia-se feliz, sua missão de doar um pouco de sonoridade àqueles que nada tinham a deixava alentada, mesmo sem nunca conhecer o que era realmente alento.
Seus pais a abandonaram desde o nascimento, ficou às guardas da mais célebre família da região, tomaram-na como a um objeto de grande valor, como a um tesouro descoberto. Encheram a sua vida de todos os benefícios inimagináveis, pois a condição os favorecia. Como não podiam ter filhos, trataram-na como a uma princesa em um reino de encantamento. Tudo isso seria motivo para viver as maiores alegrias que se poderia imaginar, mas no fundo, sentia-se desprezada por saber, adotada.
Sofreu anos a fio a dor do abandono, foi preterida por aqueles que um dia foram seus pais, mas que na verdade a sentiam um fardo a mais a ser carregado. Quando soube quem eram seus pais verdadeiros há alguns anos atrás, chorou... De tristeza, de remorso, da ausência que não se calava. Sabia que não houve realmente a intenção plena de ser deixada, eram pobres indivíduos que não tinham condição de alimentar a fome de mais uma criança.
Venceu essa carência colocando todas as suas aspirações na música, talvez a dor a tivesse dotado de um talento mais que especial, afinal as dores geralmente tendem a nos mostrar que a beleza reside nas coisas mais simples. Durante anos usava a música como uma muleta, não tinha coragem de se perder de amor, o amor era um luxo que não a instigava. Sentia que não poderia conceber o contentamento e a realização que a sua alma clamava por ter. Até conhecer o rapaz... Homem garboso, inteligente, afetuoso, que deslumbrado por ela, a cercou de carinhos e de zelos infindáveis.

Houve uma que a invejou de verdade, cobiçou o bem mais precioso que ela conquistou, o jovem Kent, jurou que se vingaria de tê-lo roubado de si. Isandra era muito popular entre as jovens do condado, tinha méritos diferentes, pois era dotada de uma beleza inconfundível; mas amarga, nutria em sua alma o desejo de se sobressair sobre todos, fossem quem fossem.
Quando pôs os olhos no jovem Kent, apaixonou-se, ou ao menos se achou apaixonada, já que o rapaz deu claros indícios que seu coração era da jovem Helena. Notadamente fez-se rival da moça, tentado apelar para o seu conhecimento na sociedade, dizendo mentiras sobre ela, levantando injúrias e desconfianças aos outros jovens do local.
Mas era inegável que Helena tinha o bem querer de todos. Sua música era algo prazeroso, o passatempo predileto dos que se reuniam para os bailes em que a violinista se apresentava. Amores foram deflagrados nestes mesmos bailes, e ela sempre fazia questão de tocar em seus casamentos, coisa, aliás, natural entre os seus amigos; sempre a convidavam para ser a solista... Apenas no seu não foi assim.

...

Naquela tarde, Helena foi se encontrar na casa de sua prima Lucy para se preparar para a cerimônia. O vestido foi especialmente costurado pela melhor costureira do condado, talvez o mais bonito já visto, de seda pura, com mangas de renda, seus cabelos foram cuidadosamente penteados e prendidos com lírios, os mais brancos lírios que havia na região.
Porém Isandra também se preparou para aquele dia, num ardil que estava bem pensado e que se fosse bem conduzido, levaria Helena a um desespero cruel.

...

Isandra, cuidadosamente entrou na sala de Lucy sem que pudesse ser vista, esperou que entrassem no quarto e ainda sem ser vista subiu ao mesmo e deixou um recado para Helena escrito com a assinatura de seu noivo, que dizia:
“Helena, venha a minha casa com urgência, é de suma importância, preciso falar-lhe pessoalmente, é caso de vida ou morte.”


Quando Helena viu um bilhete na penteadeira endereçado a ela, de tão aflita pois-se a ler, não reconheceu a caligrafia, mas viu a assinatura do amado. Deixou sua prima Lucy e as amigas que a ajudavam a se preparar para o casamento e correu para a casa do David.

...

Isandra viu que David estava no banho, pulou a janela do seu quarto e escondida nas cortinas esperou o momento em que Helena despontaria na rua... Quando a viu, se despiu por completo e postou-se nua em frente a janela; fitou-a de soslaio, sorriu e fechou as cortinas.
Helena ficou abalada, e não podia entender aquela cena, perdeu o fôlego, buscou ânimo de onde não existia para ir vê-lo. Sentiu-se perdida, desalentada, mas foi ao encontro dele, ao menos sentia que este lhe devia uma explicação.
David ainda estava no banho, quando adentrou no quarto. Isandra estava nua envolta em lençóis, disse:
- Desculpe, Helena! O amor falou mais forte, sinto por ter que passar por isto, mas como vê, David já fez sua escolha. Só ficou com você interessado em seus bens, depois que soube que era adotada, resolveu desposar-me, selamos hoje o nosso amor!
David saiu do banheiro e entrou no quarto e falou:
- Querida, o que faz aqui? Sabe que não posso vê-la no dia do nosso casamento! Olhou da forma mais cândida para Helena, com o mesmo amor que ela sempre conheceu.
Helena, aos prantos, olhou para o David e apontou para a cama.
- Isandra, o que faz aqui? Está louca, vista-se, e saia daqui, o que pensaram as pessoas?
- Não minta para Helena David, ainda agora me fez juras de amor. Diga a ela que me ama!
Falou isso com um olhar de desdém, com um olhar em fúria para a Helena.
Helena pegou o arco de seu violino que também estava na casa do amado e uma só coisa ressoava nos seus pensamentos:
- Perdi tudo, perdi tudo, minha vida acabou que mais eu posso querer?
Olhou para Isandra que continuava sorrindo da situação, falseando aquela cruel mentira.

Então, fora de si, tomou o arco e passou-lhe pelo pescoço; como uma navalha cortou-lhe a artéria, Isandra envolta em sangue, aturdida, se deu conta que a sua vida acabara de ser ceifada.
Olhou para o David e chorou, mas a fúria de sua alma foi maior; repetiu o feito, cortou-lhe a artéria do pescoço com o mesmo instrumento de morte. David olhou para ela e ainda disse:
- Jamais a traí, meu Amor!
O vestido branco de seda, coberto por tanto sangue, tornou-se tinto... De um vermelho intenso.
Helena fora de si, perdida em seus desvarios, olhou a penteadeira do amado e viu num bilhete a caligrafia do jovem David Kent que esboçava num pequeno papel os votos de amor que seriam ditos no casamento.
Olhou para si mesma e em horror se deu conta que caíra num engodo, o mais terrível laço que uma pessoa é capaz de produzir. Isandra planejara tudo...
Como setas, as certezas vieram em sua mente. Sempre a invejara, desde o dia em que conheceu David, tentou seduzi-lo mesmo em sua presença; David sempre se manteve incólume! Ela a havia enganado mais uma vez; e terminado por tomar aquilo que a sua alma havia adquirido por merecimento, o único amor de sua vida.

...

Helena no findar do dia, fora de si, caminhou passo a passo ao rochedo, aspirou o ar gélido daquela montanha íngreme, fitou o mar pela última vez, despediu-se do mundo, de David, de Isandra e deferiu o golpe que acabou com sua vida... O mesmo instrumento de dor manchou-se mais uma vez do sangue dos perdidos.
À frente o homem de capuz sentava-se numa pedra, com a mesma capa negra que sempre o favorecia; a fitava com paciência. Suas mãos, ossos sem carne, desta vez fez questão de não exibir a foice, mas o arco do violino de Helena. Com um dos braços esqueléticos esticado e o outro flexionado, tocou a sonata da Morte, sem sequer ter um violino em mãos. A melodia harmoniosa, repleta de dores, embargada e sofrível... Era como o crepúsculo de um dia.
Quando terminou, Helena caiu morta... Então desapareceu, levando consigo a sua alma!


Alexandre Ribeiro

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