Lá fora a tempestade desabava pesada e sem piedade daqueles que foram pegos de surpresa. Os poucos minutos que se passaram desde que as primeiras gotas surgiram se mostraram mais do que suficientes para tornar em rio a alameda estreita de paralelepípedos que margeava os limites daquele velho sobrado. A fúria da tormenta parecia querer lavar e purificar o ambiente, como alguém que prepara a casa para receber uma visita desejada. A noite que havia começado estranhamente escura antes da chuva, tornara-se um completo mar de trevas depois dela, sendo acentuada pela usual falta de energia elétrica que costuma surgir em situações desse tipo. Dentro da residência parecia que as trevas eram ainda mais intensas do que lá fora, apenas uma tímida chama bruxuleava oriunda de um desgastado toco parafinado. Toda a mobília daquele cômodo de dimensões reduzidas se resumia a uma cadeira e uma mesa, ambas insinuavam as marcas do tempo, exalavam um odor nauseante de mofo e decomposição, o velho que fazia uso dos móveis não aparentava melhores condições, a pele de seu rosto apresentava profundos sulcos e irregularidades. Enormes olheiras denunciavam noites mal dormidas, no entanto o homem não demonstrava sinais de cansaço, pelo contrário, parecia eufórico como se estivesse prestes a realizar um grande feito. Sua atenção estava totalmente voltada para o curioso artefato depositado sobre a mesa, um livro cuja aparência deixava a mobília com aspecto de recém saída da marcenaria. Sob uma avaliação mais precisa, seria possível jurar que a capa do livro em um tempo remoto já revestira o corpo de alguém. Símbolos de um idioma esquecido preenchiam as páginas amareladas e gastas, nada significariam para uma pessoa comum, mas ele estava bem longe disso, não havia segredos nesses assuntos que ele não desvendasse. As lacunas que se abriam entre as palavras do texto formavam um bizarro jogo de palavras cruzadas que era preenchido sem hesitação pelo homem. Não fazia uso de uma tinta comum na pena, traçava suas linhas com o sangue roubado da jovem que jazia no inicio da escadaria, era imprescindível que houvesse um pagamento pela dádiva que esperava receber, uma vida seria pouco, tiraria duas, dez, mil se fosse preciso, apenas o seu objetivo importava agora, nada mais. Afinal, quando o Caçador chegasse, e ele chegaria, não haveria limites para a sua fome, a carne e o sangue dos viventes ainda seria pouco, não haveria mais escuridão porque a luz seria apenas uma vaga lembrança na alma dos atormentados, a distinção que as fazem irmãs não mais existiria, e o mundo passaria a apresentar uma invariável atmosfera melancólica e previsível, mergulhada em uma repetição de tormento e danação. Ele vislumbrara esta realidade e desejava ser parte ativa desta nova ordem, temia servir de gado para a horda caso um outro percebesse a chance que agora estava diante de si. Uma última lacuna, os derradeiros riscos com o escarlate pecaminoso, a senha para a comunhão entre os dois mundos. A gota que exerceu o papel de ponto final, imperceptivelmente sinalizou para que o ar gelado da noite iniciasse uma movimentação ritmada e ruidosa. As rajadas do vento executavam uma sinfonia cujo maestro seria o próprio senhor das terras esquecidas. Quem olhasse pela fresta da janela se surpreenderia com a materialização gelatinosa e levemente transparente que indicava o surgimento do Caçador. Nenhum vestígio de felicidade, nenhuma sombra de um bom pensamento, nada disso poderia coexistir com aquela criatura. A massa, disforme no inicio, começou a encorpar imediatamente a medida que partículas dos sentimentos vis da humanidade, que estavam suspensas no ar, se identificaram e se uniram à essência que a compunha. A nuvem fétida se movimentava lentamente enquanto os contornos iniciais da criatura deixavam claro que o caminho era sem volta, o ato definitivo estava na iminência de se concretizar.
Uma cabeça enorme, ornada com chifres que se deslocavam incessantemente, venceu os domínios do sobrado, as fileiras de dentes retorcidos e afiados destacavam-se na mandíbula escancarada, seriam a parte mais chamativa do semblante hediondo do ser, se não fossem as órbitas gigantescas e amareladas que se projetavam como dois pequenos sóis trazendo uma luminosidade intensa e mórbida ao interior do pequeno cômodo. Seu longo pescoço terminava em um corpo revestido por placas duras e escamosas, de onde inúmeras garras longas e negras, caudas sinuosas e cabeças detentoras de bocas famintas se projetavam numa mescla aterradora de almas perdidas em um único receptáculo. O velho não demonstrava surpresa perante a visão da criatura que serpenteava ao seu redor, o medo era inegável no que ele chamava de coração, mas ainda assim exalava uma confiança inabalável. O Caçador das trevas olhou diretamente para ele e fazendo uso da voz que há séculos não era ouvida nas terras mortais disse-lhe:
- Preparado para a passagem, humano?
- Perfeitamente, mestre!
O velho estendeu o braço direito e com uma lâmina virgem abriu um longo talho fazendo verter a essência rubra que circulava em suas veias. O caçador deixou, então, pender uma longa e áspera língua bifurcada, e com ela percorreu a pele manchada do homem, o sangue parou de gotejar enquanto o mortal sentia os músculos entorpecerem. O ser recolheu subitamente a língua, deixando escorrer uma gosma avermelhada.
- Não, humano! Não foi com esse pagamento que você me chamou!
- Como assim, mestre?
- O sangue, mortal, esse não é o sangue constante no livro!
- Obviamente que não, mestre. Esse é o sangue do sacrifício...
- Não, verme, não! O sangue do reclamante deveria preencher as lacunas, somente ele.
- Desculpe-me, mestre, eu, eu me enganei e...
- Basta, mortal, basta! Não temos muito tempo, o elo vai se fechar.
- O que devo fazer?
- Rápido, a lâmina, sacrifique-se em minha causa!
- Como? Não, mestre! Eu devo estar ao seu lado, não devo morrer...
- Depressa, humano, é o único jeito de permanecer aqui, é o único jeito!
- Não, mestre, não! Não posso me matar!
O homem largou a faca, empurrou a mesa e iniciou uma tentativa de fuga. O vento intensificou os açoites fazendo as folhas amadeiradas da janela dançarem perante a sua vontade. Era o indício de que o vórtice preparava-se para desaparecer.
- Não fuja, mortal! Não fuja!
O velho ignorava os apelos do Caçador, para ele matar não era uma tarefa complicada, mas atentar contra si próprio nunca fizera parte de seus planos. A agilidade com que descia os degraus não condizia com a idade que aparentava possuir. A urgência era um estímulo eficiente. Ao dobrar o corredor estaria apto para ganhar as ruas, e então lhe restaria torcer para que o elo se desfizesse. Durante alguns instantes parecia que conseguiria, mas a sorte é uma dama temperamental. Os fios alvos de sua cabeça foram agarrados e o couro cabeludo perfurado por alguns dos muitos ganchos afiados que enfeitavam os dedos do Caçador. Enquanto era arrastado escada acima, sentia como se um ácido começasse a percorrer o seu corpo. Doía, mas não era uma dor meramente física, era mais, sua alma parecia queimar. O desespero lhe dominou, pois sabia que aquilo seria só o começo.
O demônio posicionou o homem de forma que este permanecesse ereto e imóvel diante de si. Já não seria possível para ele, naquela ocasião, tornar este mundo uma extensão de seus domínios, mas, pelo menos, não voltaria faminto para o lugar de onde viera. Chegou bem próximo do velho, perto o bastante para fazer com que este sentisse a pele do rosto ser queimada pela fumaça que escapava das narinas da besta. O homem não ousava abrir os olhos, mas não faria diferença, logo ele se acostumaria a todas as sutilezas da horda, pois enquanto sentia sua carne ser provada pela voracidade do Caçador, enquanto tentava inutilmente lutar contra a língua animalesca que lhe drenava os órgãos e vísceras, enquanto seus ossos estavam sendo triturados por mil dentes, enquanto estava sendo devorado vivo, começava a sentir sua alma incorporando-se à estrutura daquele que o dominava. Logo ele seria mais um mesclado ao corpo do Caçador, e esperaria pacientemente para que alguém oferecesse a própria vida para trazer-lhes liberdade e alimento.
***********************************************************************
- Então é isso?
A pergunta do gerente de edição da revista pareceu-lhe debochada e maldosa.
- Sim, senhor Medeiros. Esse é o capítulo final.
- Esperamos longos sete dias por isso?
- Bom, se o senhor desejar posso refazer algum tópico ou...
- Não, não, não. Já não temos tempo. Fica assim mesmo, mas não garanto a renovação do contrato para o próximo período.
- Mas senhor Medeiros, eu fiz o melhor que pude...
- O seu melhor mostrou-se insuficiente para a revista.
- Ao menos o senhor poderia deixar o último cheque, então?
- Não me faça rir! Você está nos devendo. Esqueceu dos empréstimos? Só pode ser piada...
O executivo deixou o apartamento do escritor sem se despedir, na verdade, sem olhar para trás. O rapaz permaneceu calado, acompanhando apenas com os olhos marejados a silhueta esnobe se distanciar e desaparecer pelo corredor. Ele estava cansado, mas não se lamentaria novamente. Caminhou lentamente até a escrivaninha, abriu a gaveta e retirou alguns objetos, espalhou-os a fim de que pudesse admira-los por alguns instantes. Então começou a fazer o que mais gostava, mas não utilizava os teclados de um computador, não, valia-se de uma pena de prata e de si mesmo como tinta para isso. Algumas vezes a inspiração aparece de experiências próximas e palpáveis. As respostas surgiam fáceis como uma sucessão de palavras em cascata, e ao sentir que havia terminado, virou seus olhos para a janela na ânsia de vislumbrar a noite estrelada que começava a dar lugar para a cortina de nuvens pesadas e frias. O sangue escorria farto pela extensão do braço mutilado, as gotas formavam uma pequena poça sobre o desgastado piso cerâmico do chão. O vento soprava forte, logo o vórtice gelatinoso se formaria e a areia do tempo se espalharia de vez. Alcançou o canivete que havia separado e deixou escapar uma lágrima tímida. Então, posicionou a lâmina na pele macia do pescoço e com um golpe firme e preciso abriu uma longa e profunda fenda. Imediatamente caiu ajoelhado e sentiu a vida abandonar o seu corpo. Antes de fechar definitivamente os olhos ainda pôde notar uma figura conhecida surgir no vão da janela. O Caçador encontraria um novo mundo para explorar, e uma caça em especial o aguardava, sendo cuidadosamente recomendada através de um singelo bilhete no livro sobre a escrivaninha, escrito num dialeto desconhecido pelos homens, com o sangue oferecido de bom grado estava um nome: Edgar Medeiros.
Uma cabeça enorme, ornada com chifres que se deslocavam incessantemente, venceu os domínios do sobrado, as fileiras de dentes retorcidos e afiados destacavam-se na mandíbula escancarada, seriam a parte mais chamativa do semblante hediondo do ser, se não fossem as órbitas gigantescas e amareladas que se projetavam como dois pequenos sóis trazendo uma luminosidade intensa e mórbida ao interior do pequeno cômodo. Seu longo pescoço terminava em um corpo revestido por placas duras e escamosas, de onde inúmeras garras longas e negras, caudas sinuosas e cabeças detentoras de bocas famintas se projetavam numa mescla aterradora de almas perdidas em um único receptáculo. O velho não demonstrava surpresa perante a visão da criatura que serpenteava ao seu redor, o medo era inegável no que ele chamava de coração, mas ainda assim exalava uma confiança inabalável. O Caçador das trevas olhou diretamente para ele e fazendo uso da voz que há séculos não era ouvida nas terras mortais disse-lhe:
- Preparado para a passagem, humano?
- Perfeitamente, mestre!
O velho estendeu o braço direito e com uma lâmina virgem abriu um longo talho fazendo verter a essência rubra que circulava em suas veias. O caçador deixou, então, pender uma longa e áspera língua bifurcada, e com ela percorreu a pele manchada do homem, o sangue parou de gotejar enquanto o mortal sentia os músculos entorpecerem. O ser recolheu subitamente a língua, deixando escorrer uma gosma avermelhada.
- Não, humano! Não foi com esse pagamento que você me chamou!
- Como assim, mestre?
- O sangue, mortal, esse não é o sangue constante no livro!
- Obviamente que não, mestre. Esse é o sangue do sacrifício...
- Não, verme, não! O sangue do reclamante deveria preencher as lacunas, somente ele.
- Desculpe-me, mestre, eu, eu me enganei e...
- Basta, mortal, basta! Não temos muito tempo, o elo vai se fechar.
- O que devo fazer?
- Rápido, a lâmina, sacrifique-se em minha causa!
- Como? Não, mestre! Eu devo estar ao seu lado, não devo morrer...
- Depressa, humano, é o único jeito de permanecer aqui, é o único jeito!
- Não, mestre, não! Não posso me matar!
O homem largou a faca, empurrou a mesa e iniciou uma tentativa de fuga. O vento intensificou os açoites fazendo as folhas amadeiradas da janela dançarem perante a sua vontade. Era o indício de que o vórtice preparava-se para desaparecer.
- Não fuja, mortal! Não fuja!
O velho ignorava os apelos do Caçador, para ele matar não era uma tarefa complicada, mas atentar contra si próprio nunca fizera parte de seus planos. A agilidade com que descia os degraus não condizia com a idade que aparentava possuir. A urgência era um estímulo eficiente. Ao dobrar o corredor estaria apto para ganhar as ruas, e então lhe restaria torcer para que o elo se desfizesse. Durante alguns instantes parecia que conseguiria, mas a sorte é uma dama temperamental. Os fios alvos de sua cabeça foram agarrados e o couro cabeludo perfurado por alguns dos muitos ganchos afiados que enfeitavam os dedos do Caçador. Enquanto era arrastado escada acima, sentia como se um ácido começasse a percorrer o seu corpo. Doía, mas não era uma dor meramente física, era mais, sua alma parecia queimar. O desespero lhe dominou, pois sabia que aquilo seria só o começo.
O demônio posicionou o homem de forma que este permanecesse ereto e imóvel diante de si. Já não seria possível para ele, naquela ocasião, tornar este mundo uma extensão de seus domínios, mas, pelo menos, não voltaria faminto para o lugar de onde viera. Chegou bem próximo do velho, perto o bastante para fazer com que este sentisse a pele do rosto ser queimada pela fumaça que escapava das narinas da besta. O homem não ousava abrir os olhos, mas não faria diferença, logo ele se acostumaria a todas as sutilezas da horda, pois enquanto sentia sua carne ser provada pela voracidade do Caçador, enquanto tentava inutilmente lutar contra a língua animalesca que lhe drenava os órgãos e vísceras, enquanto seus ossos estavam sendo triturados por mil dentes, enquanto estava sendo devorado vivo, começava a sentir sua alma incorporando-se à estrutura daquele que o dominava. Logo ele seria mais um mesclado ao corpo do Caçador, e esperaria pacientemente para que alguém oferecesse a própria vida para trazer-lhes liberdade e alimento.
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- Então é isso?
A pergunta do gerente de edição da revista pareceu-lhe debochada e maldosa.
- Sim, senhor Medeiros. Esse é o capítulo final.
- Esperamos longos sete dias por isso?
- Bom, se o senhor desejar posso refazer algum tópico ou...
- Não, não, não. Já não temos tempo. Fica assim mesmo, mas não garanto a renovação do contrato para o próximo período.
- Mas senhor Medeiros, eu fiz o melhor que pude...
- O seu melhor mostrou-se insuficiente para a revista.
- Ao menos o senhor poderia deixar o último cheque, então?
- Não me faça rir! Você está nos devendo. Esqueceu dos empréstimos? Só pode ser piada...
O executivo deixou o apartamento do escritor sem se despedir, na verdade, sem olhar para trás. O rapaz permaneceu calado, acompanhando apenas com os olhos marejados a silhueta esnobe se distanciar e desaparecer pelo corredor. Ele estava cansado, mas não se lamentaria novamente. Caminhou lentamente até a escrivaninha, abriu a gaveta e retirou alguns objetos, espalhou-os a fim de que pudesse admira-los por alguns instantes. Então começou a fazer o que mais gostava, mas não utilizava os teclados de um computador, não, valia-se de uma pena de prata e de si mesmo como tinta para isso. Algumas vezes a inspiração aparece de experiências próximas e palpáveis. As respostas surgiam fáceis como uma sucessão de palavras em cascata, e ao sentir que havia terminado, virou seus olhos para a janela na ânsia de vislumbrar a noite estrelada que começava a dar lugar para a cortina de nuvens pesadas e frias. O sangue escorria farto pela extensão do braço mutilado, as gotas formavam uma pequena poça sobre o desgastado piso cerâmico do chão. O vento soprava forte, logo o vórtice gelatinoso se formaria e a areia do tempo se espalharia de vez. Alcançou o canivete que havia separado e deixou escapar uma lágrima tímida. Então, posicionou a lâmina na pele macia do pescoço e com um golpe firme e preciso abriu uma longa e profunda fenda. Imediatamente caiu ajoelhado e sentiu a vida abandonar o seu corpo. Antes de fechar definitivamente os olhos ainda pôde notar uma figura conhecida surgir no vão da janela. O Caçador encontraria um novo mundo para explorar, e uma caça em especial o aguardava, sendo cuidadosamente recomendada através de um singelo bilhete no livro sobre a escrivaninha, escrito num dialeto desconhecido pelos homens, com o sangue oferecido de bom grado estava um nome: Edgar Medeiros.
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